Fio… por que quilos?

Tudo evoluiu desde que inventaram a eletricidade. Televisões, aparelhos de CDs e DVDs, caixas de som, ferros de passar roupa, lâmpadas… mas se tem uma coisa que não mudou nada foi o fio. Heloou, seu engenheiro! Dá para se concentrar no nosso problema?

Não importa o aparelho supimpa que você compre e o quão prateado e moderno ele seja. O problema de como esconder os fios permanece. Na rua o que vemos flutuando como se fossem pássaros, agonizando no passeio público e na mão e contramão atrapalhando o tráfego? Eles. Os fios. Você pode sair do interior do nordeste e ir direto para o Japão pleno de suas modernices e bizarrices. Lá estão eles correndo o céu em paralelo e se encontrando (!!!) nos postes onde se misturam sem qualquer cerimônia. Vê se isso é admissível…

Quase dois séculos já se passaram e só o que temos é mais e mais fios pela casa! Até as coisas que funcionam sem fio, como os celulares, os noutebuques, os aipódes e aipédis da vida de nada nos serviriam sem um bom fio ligado na tomada para alimentá-los. A medicina melhorou com o tempo? Vai ter um treco na frente de um médico! Ele vai é te encher de fios! E chapinha de cabelo? Tem de titanium, de íons, de bósons, quarks e o diabo a quatro! Mas de que adianta se os fios continuam atrapalhando os alizamento dos fio? Fala sério! Que evolução é essa? Ainda querem nos enganar pintando-os de vermelho, verde, amarelo… só porque a televisão com suas imagens coloridas é melhor que a preto e branco eles acham que com fio é assim também. Comigo, não, violão!
Vivemos numa ditadura, tá ligado? Estamos presos nesse regime e limitados…até quando, minha gente? Temos que brigar sério, ir para as ruas para exigir que algum líder político faça alguma coisa! Nada de perder tempo pedindo para aprovar casamento gay porque isso é besteira. Casamento, bem sabem todos os casados, é o ó. Isso é até falta de carinho com os gays. Temos é que pedir para os governantes o fim desse regime antidemocrático imposto desde o idos de Benjamin Franklin. Temos que ir à luta para que isso entre nos programas de governo e conseguir mais incentivo para as pesquisas sérias. E não dessas bobeiras que não nos servem para nada como descobrir como foi a origem do Universo ou do que é feito a matéria . Pra que perder tempo com isso? Precisamos é de pesquisas sobre essa porcaria de matéria criada e não evoluída: o fio.

Todo Mundo em Seu Devido Lugar

Estava escrevendo a minha tese que dentre outras coisas mostra como a visão aristotélica do funcionamento e da organização do Universo foi derrotada e peguei-me pensando sobre o meu lugar nesse budega toda…

Em breves palavras que serão suficientes para que vocês entendam Aristóteles e Elika, o filósofo grego acreditava que tudo no Universo possuía um lugar natural. Os movimentos terrestres obedeceriam a leis teleológicas, cada corpo devendo ocupar uma posição privilegiada onde ficaria em repouso. Se resolvermos tirar qualquer objeto do repouso teremos que aplicar uma “força” sobre ele e cessada a aplicação desta “força”, ele buscará novamente sua imobilidade. Fora do seu lugar natural, o corpo é “ser em potência”, dizia Aristóteles, e só é ser atual em seu lugar natural, onde fica paradim, por não haver necessidade de mover-se. Daí que veio Galileu, Descartes, Huyghens e Newton e mostrou que tudo isso não passava de um grande equívoco. Movimento pode existir sem que nenhuma força atue no corpo e essa parada de ‘lugar natural’ não se sustenta, pois o repouso e o seu contrário, o movimento, são relativos. Bah. E eu não sei onde fica o meu lugar?

Comecemos quando aprendemos a falar e a andar sozinhos. Qual foi a primeira coisa que nossos pais nos ensinaram caso nos perdêssemos ou fôssemos sequestrados e conseguíssemos fugir? Se nos perguntassem de onde somos, nós tínhamos que responder onde nascemos e onde moramos porque era pra lá que deveríamos voltar. E, de fato, mesmo que não sejamos sequestrados e traficados, basta uma viagem para sabermos que não estamos em nossa casa. O melhor da viagem, como todos os viajados mais descolados afirmam, é a volta. Porque nada se compara à sensação de abrirmos a porta do nosso lar, o nosso lugar preferido.

Na casa de meus pais, e acredito que em todas as “casas de família” sejam assim, cada um tinha o seu lugar na mesa. O meu, por exemplo, era perto da geladeira e disso me lembro muito bem porque não tinha paz na hora das nossas refeições. Pega o ketchup? Pega a manteiga? Pega a água? Pega… aff. Que saco. Mas pelo menos não ficava de costas para a porta como a minha irmã mais velha e perto da cozinha como o papai que tinha que se levantar toda hora para pegar um garfo, um prato e tudo o mais que se tem em uma cozinha. Mamãe ficava de costas para a televisão e todos gritavam para ela sair da frente de forma que o lugar dela era espremido ao lado da Tata, a que ficava de costas para a porta, ou ao meu lado, o que era bom porque quando me pediam algo era ela quem pegava. Tony sentava-se ao lado do papai e também ficava de frente para a televisão reclamando de mamãe não ser transparente. Lyli quando nasceu ocupou o lugar da Ta que foi morar em Florianópolis e quando todos estamos juntos a configuração tende a se repetir. Fato é que nunca saberemos como os nossos lugares foram definidos. Sabíamos simplesmente disso e nunca sequer nos passou pela cabeça mexer com a ordem do cosmos-copa-cozinha. O arranjo foi acontecendo naturalmente, tal como dizia Aristóteles.

Daí que vem a escola. Quando éramos pequenininhos a tia definia os nossos lugares e se fôssemos mal em nota, a primeira atitude da tia era nos mudar de lugar. Ela havia errado ao forçar uma determinada arrumação e é isso o que acontece quando tiramos uma peça do seu lugar natural no Universo. Ela sofre. Padece.

Quando adolescentes a coisa era bem mais democrática. Com uma semana de aula, depois de algumas variações, a turma chegava a uma disposição que durava o ano todo. Havia o pessoal nerd, ou como dizia-se no meu tempo: CDF, que sentava lá na frente babando ovo do professor. Havia o pessoal da esquerda e da direita com filosofias de vida completamente diferentes e que se misturavam quando bem interessasse a ambas as partes, tal como acontece na política. Havia a galera do fundão, helooou! euzinha aqui, que era da bandidági e sabia bem melhor o que vem a ser a tal da ‘cumplicidade’. Se, por alguma medida disciplinar, a configuração adquirida de forma natural da turma fosse alterada, alguns de nós entrávamos em depressão. Por que toda e qualquer pessoa se adapta bem a uma parametrização dentro de uma sala de aula? Freud não saberia responder, psicólogos e sociólogos tentaram, mas Aristóteles já tinha a resposta mesmo que em sua época não houvesse salas de aula.

Ainda na escola, o primeiro lugar nunca me pertenceu. Também nunca fui de ficar em último. O meu lugar era, como dizia o diretor, na mérdia, lugar esse muito interessante por sinal e do qual muito me orgulho até hoje, pois não era conhecida pelas minhas notas e sim pelo o que dizia, fazendo juz ao nome da classe em que o diretor me colocava.

Quer se sentir perdido e sem saber o que falar e o que fazer? É quando uma pessoa amiga nos pergunta o que faríamos em ‘seu’ lugar. Ao nos colocarmos realmente em um lugar que não seja o nosso, não sabemos como agir. Tudo bem que no nosso cafofo natural também temos muitas dúvidas de como devemos nos comportar, mas elas pioram, aumentam exponencialmente! quando transladamos de forma forçada por nos imaginarmos em um lugar que não seja o marcado pelo nosso nome e sobrenome.

Some-se a tudo isso quantas vezes ouvimos e falamos “vá já para o seu lugar!”, “Ponha-se no seu lugar!”. E ainda, quando vemos uma pessoa triste, deprimida… dizemos logo que ela ainda não se encontrou e se esse infeliz ser é nosso amigo, procuramos descobrir com ele o seu lugar nesse mundo.

Então, seu Newton, a sua teoria de Gravitação Universal foi muito bacana, há uma só lei para explicar os movimentos terrestres e os celestes, ok, muito bonito. Mas erraste feio quando nos deixou vagando sem destino pelo mundo ao descartar em sua totalidade a teoria do ‘lugar natural’ proposto pelo sábio Aristóteles. O filósofo grego, se pensarmos bem, pode ter errado em algumas coisas sobre o movimento dos objetos inanimados, vá lá… mas, definitivamente, todos nós temos e sabemos qual é o nosso lugar nesse imenso Universo. Ao lado da pessoa amada, no palco, numa mesa de bar, em uma sala de aula, numa biblioteca, de frente pro mar, na cozinha, no Rio de Janeiro, em Madureira,… sentimos, ainda que não saibamos explicar, quando somos cem por cento nós mesmos e não um ser simplesmente em potencial. Quando todo o nosso cosmos está em equilíbrio.

Sabemos quando estamos em casa.

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O desenho que ilustra essa postagem foi feito pelo artista Sergio Ricciuto Conte especialmente para esse texto, ainda que ele não saiba disso.
 
 
 
 

Tudo em seu Devido Lugar


Quando somos bem ou mal educados por uma família achamos natural o que vemos ou ouvimos em casa. Ao cair no mundo, começamos a estranhar as diferenças e questionar o certo e o errado em vários referenciais diferentes da nossa morada. Quando fui pela primeira vez para a escola com seis anos, deparei-me com o fato de estar aprendendo algo errado com meus pais como a pronúncia das palavras. A partir de então, comecei a fingir que acreditava em tudo o que eles me diziam sem mais nem sequer prestar muita atenção na forma em que as palavras eram articuladas.
(Papai é japonês e possuía dificuldades naturais à sua etnia com erres e eles. Marília, colírio, por exemplo, eram um plobremaço. Mamãe, por causa de um fenômeno fonético já explicado por historiadores e que nada compromete a sua inteligência, falava Cráudia, chicrete, pranta, ingrês, frauta,…o que atrapalhava menos a papai do que a nós que aprendemos a nos expressar com os dois.)
Dentro apenas de mim mesma, decidi que não mais limitaria a duas pessoas a responsabilidade de ensinar-me o que era o direito e o desacertado a fazer nessa vida. E aos quatorze anos, já namorando com  aquele que seria o meu marido, comecei a frequentar uma residência muito distinta da minha, a começar pelo número reduzido de pessoas: a casa organizada da minha sogra. Um porta-retrato tirado do lugar e recolocado em um ângulo diferente era percebido e imediatamente reajustado de forma que em qualquer cômodo da casa em que entrávamos, tudo estava milimetricamente em ordem e organizado como nos cenários de novela. E em matéria de limpeza era tal e qual um bom consultório de dentista. Minha sogra havia me ensinado que a casa da gente reflete como anda a nossa cabeça. Se nos deparamos com um ambiente sem ordem, dizia ela, pode ter certeza de que a pessoa que lá vive está de alguma forma descompensada. Achei aquilo o máximo e mega correto.
Com o tempo, ao voltar para a minha vivenda o que jamais me incomodava começou a me importunar: a bagunça feita pelos meus irmãos e também pelos meus próprios pais. Fosse nos quartos, na sala, no banheiro ou na cozinha eu ficava boquiaberta com o desleixo de todos e fazia o que deveria ser feito: arrumar, pois assim os ajudaria a encontrar o equilíbrio interno que lhes faltava.
Aconteceu que um dia, já com mais idade, fui a uma confraternização de final de ano na casa do tio Nero e da tia Neide, pais da prima Silvana, parentes de minha sogra. Lembro-me como se fosse hoje o que senti ao observar aquela moradia em que visitei somente uma vez. Era tudo muito simples, os tios recém-conhecidos eram pessoas extremamente humildes, mas não havia dúvidas que cuidavam daquele simpático cafofo com muito amor e carinho a despeito de ter nitidamente objetos fora do lugar. Não hesito em dizer que ali foi um dos lugares mais bonitos em que já pisei.
Alguns meses se passaram. Recém-casada e completamente neurótica com a arrumação, por algum motivo ligado a comemoração e festa, fomos à casa da prima Silvana, lá no Recreio. Casa grande, bonita, em condomínio fechado e tudo! Tio Nero já era falecido, mas a tia Neide estava lá. Viria a deixar saudades de sua doçura pouco tempo depois. Como de costume, Silvana, uma mulher que aos meus olhos era bem resolvida e super determinada, convidou-me para conhecer a parte de dentro daquela imponente habitação e eu aceitei prontamente cheia de curiosidade.
A casa estava uma zona segundo meus novos parâmetros sograis! Silvana nem sequer se desculpou e mostrava cada cômodo bagunçado por seus filhos eu diria até com muito orgulho. Assim foi com a sala cheia de fitas e consoles de vídeo-game, com as camas removidas e as roupas jogadas no quarto das meninas. Mas, de uma forma estranha, senti exatamente o mesmo de quando pisei na casa de seus pais. Mais uma vez, eu estava dentro de um lar cheio de vida bem vivida.
Onde a minha sogra havia errado quando disse que anarquia de nossa casa reflete a balbúrdia de nossa mente? Em parte, ela tem razão, pois, nossa casa deve ser o centro de resolução de nossos problemas. E, para ser um local onde vivem companheiros que, mesmo na divergência, se apóiam e nas lutas se solidarizam, é bom que este seja realmente limpo e organizado. Mas, eu agora acrescentaria: de uma forma que nos reconheçamos e que nos identifiquemos quando estamos nele. Para que tenhamos pressa em chegar e para que retardemos ao máximo a nossa saída, a nossa morada deve ser arrumada de um jeito que nos sobre tempo de viver nela. 
Há de se gastar alguns minutos afofando as almofadas, esticando lençóis, limpando, esterilizando, quiçá ajeitando os porta-retratos!  Mas nada que impeça um ‘quando’ bem demorado para tirar os livros das estantes e um ‘onde’ bem espaçoso em que as crianças possam ser criativas. A forma em que vivemos em nosso lar não deve nos envergonhar mas sim nos encher de orgulho diante das visitas. E isso, a despeito de toda a admiração e carinho que tenho pela minha sogra, eu aprendi mesmo foi com os meus pais. Só percebi que eles estavam certos quando tive o prazer de conhecer tio Nero e  tia Neide e o  deleite de ser apresentada ao angu de caroço da prima Silvana pelos seus olhos repletos de vanglória.
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O quadro que ilustra esse texto é de CHILDE HASSAM e se chama A sala das flores.

A Falsa Rainha

Desenho feito pelo artista Sergio Ricciuto Conte.
No início deste ano, resolvi tratar as minhas fortes enxaquecas. Estava aberta à qualquer tipo de tratamento a despeito de minhas crenças. Acupuntura, lobotomia, shiatsu, pilates, chá de erva amarga, reza forte, banho de pipoca,…qualquer coisa contanto que me tirasse a dor. Acabei mesmo me resolvendo pelo lado tradicional. Postei no feicebuque que sentia dores, muitas dores, dores horríveis!!!, e pedi sugestões dos amigos conectados. Em menos de um minuto, um amigo de escola da época em que eu lia e achava bom Paulo Coelho, respondeu-me prontamente fornecendo um número de telefone para eu entrar em contato.
Não vou me estender muito aqui contando o nosso estranho reencontro, depois de bem, quase vinte anos sem nos vermos e nem ao menos trocar uma palavrinha nesse intervalo que apesar da dimensão tenha sido efêmero por distração. Apenas farei uma pequena observação do tamanho de um só parágrafo. É costume universal quando vemos uma criança depois de um certo intervalo dizer “Nossa! Como ele cresceu!”, por ficarmos realmente assustados menos com o desenvolvimento da criança do que com o constatar do passar do tempo que ocorre para nós; também. Algo mais, porém, ocorre quando reencontramos amigos de infância quer ele tenha virado padre, professor, político ou quer tenha se transformado em um doutor. Percebemos a transformação externa, mas não conseguimos ver um adulto como um outro qualquer na nossa frente. Ao vivermos esse reencontro, não há cabelos brancos e rugas residentes em nossos rostos que nos impeçam de enxergar o menino que ainda é e sempre será, para nós, o amigo reencontrado. Por outro lado, somente nesses reencontros percebemos também que há um lugar dentro da gente em que seremos eternamente infantis. Ver, então, uma criança de jaleco, medindo a minha pressão, auscultando o ritmo das minhas sístoles e diástoles, e olhando a minha íris com uma lanterninha supimpa foi uma experiência que exigiu manobras psicológicas que ninguém havia me ensinado. Enfim, a minha sorte é que Leonam era do tipo “cê-dê-éfe”, ou para usar uma linguagem mais atual, meganerd. Sentava-se sempre lá na frente na sala de aula e não me dava lá tanta atenção naquela época. Vi isso como algo extremamente positivo e procurei só pensar durante a consulta em quanto ele sempre soube mais do que eu. Esse manejo mental evitou que eu pegasse aquele estetoscópio e dissesse para ele “agora é a minha vez de ver como você está!”.
O ponto que me fez vir aqui hoje é que Leonam, ou melhor, o doutor Leonam permitiu-me, sem querer, um outro tipo de viagem. Ele percebeu que a causa das minhas dores de cabeça era minhas noites pessimamente dormidas. Para tanto, prescreveu-me uma pílula mágica que alguns minutos depois de ingeri-la temos o sono dos deuses. E se eu já sonhava antes por madrugadas afora, agora por elas adentro ando vendo filmes de longa metragem projetados, diria Freud,  na tela do esconderijo secreto: o inconsciente. As dores passaram, mas ao custo de toda manhã eu ter que me olhar no espelho depois de tudo o que me é revelado. Como ocorreu na alvorada de hoje.
Sonhei que ia por uma rua bem íngreme sob a luz da lua cheia, quando a uma curva do caminho dou de cara com um casarão tipo um castelo por onde orbitavam morcegos. As luzes estavam todas acesas de forma que eu poderia ver o que se passava lá dentro. De longe parecia uma festa, de perto, uma orgia. Corpos seminus dançavam freneticamente, gargalhadas estridentes, espadas de brinquedo em riste e chapéus de Napoleão. Não era uma festa. Não era uma orgia. Tratava-se de um hospício. Sozinha,  prontifique-me de sair de lá o mais rápido possível quando de repente, não mais que de repente, surge à minha frente vindo do alto, talvez de uma árvore, um homem pensando estar vestido de homem-aranha. A máscara nada mais era do que uma cueca vermelha onde no buraco das pernas viam-se olhos esbugalhados. Ele ficou naquela posição com os joelhos dobrados e as pernas arreganhadas, uma palma da mão apoiada no chão, o pulso da outra apontando na minha direção. Queria me agredir, mas não sem antes, aparentemente, prender-me com uma teia. Era um louco fugido e eu estava em pânico. Ocorreu-me, então, uma ideia salvadora:
       – Como ousas a interromper o curso de uma Rainha? Fique de pé e volte de onde veio antes que eu mande os cavaleiros das… os cavaleiros das… os cavaleiros das Tilápias te prenderem!
      O maluco imediatamente cumprimentou-me, tal como saudamos uma majestade: curvando-se  e de cabeça baixa, gesto natural dos submissos. Isso feito, saiu pulando em direção ao castelo passando pelos ramos altos que saiam de troncos lenhosos. Comecei a rir no sonho, mas ri tanto e tão alto que o barulho rompeu a barreira onírica e materializou-se nos tímpanos de meu marido que imediatamente acordou e ficou me olhando assustado. Achando que eu estivesse sofrendo, despertou-me acariciando cautelosamente o meu colo.
      Tivesse eu ainda na terapia, ouviria que a doida que existe em mim é trazida num regime altamente rigoroso tal qual uma monarquia. O espelho que fala sem firulas o que vê disse-me que o diabo será o dia em que ela, a doida, descobrir que eu não sou rainha nenhuma.
     A doida que existe em mim… os doidos que existem em todos nós…Olhando para todos que me rodeiam percebo que a civilização não é passível de sucesso dado que todos nós sequer conquistamos um mínimo de equilíbrio emocional sem muito esforço. A Bíblia já nos diz isso há séculos de forma simbólica. Perdemos no pecado a condição de sermos racionalmente harmoniosos, somos proibidos de ter a visão do paraíso.
        Continuando a olhar a mulher descabelada e com olheiras no objeto de vidro e de metal bem polido, percebi que a doida que existe em mim é responsável pelas emoções mais puras que a vida me deu. É ela, essa descompensada oligofrênica de cabelos  longos e alvoroçados, portadora de um vestido branco, curto e todo rasgado, usando um chapéu grandão cheio de adereços e que vive descalça, que vira e mexe salta de dentro de mim e grita sim! num  momento em que meu ser civilizado, com calças sociais, blusinhas fru-fru e sapatos scarpins ameaça a dizer não a alguma aventura. Foi essa doida quem se apaixonou inúmeras vezes pela mesma pessoa e permitiu que um outro, amado somente uma, fizesse-lhe o primeiro filho. Foi ela quem chorou quando criança, debatendo-se e assustando os vizinhos, a perda de um preá . Foi ela quem negou Jesus Cristo, o único homem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra, por temer o mesmo fim. É essa doida que não adormece dentro de mim e que, por isso, nunca me deixou ter uma noite completa de sonos, pois, sempre me desperta ao ficar reivindicando aos gritos, muito antes do amanhecer, o direito de correr contra o vento. Essa louca contida, refreada, domesticada, enrustida e subjugada é o legítimo sustentáculo da minha verdadeira personalidade, é a medida da minha condição feminina, heroína e pobre-coitada, branca por necessidade, santa para tantos por tanta obtusidade, soldado obediente, mas que um dia há de revoltar-se contra toda essa conveniente disciplina e libertar de vez de toda essa loucura quando descobrir que nunca fui e que jamais serei uma Rainha.
         As dores de cabeça praticamente não existem mais e creio que ao parar de tomar o remédio elas não voltarão, pois a pureza de minha debilidade, antagonicamente poderosa pela sua fragilidade e pela sua força, está perto de ser coroada com flores, de ser adornada com bijuterias e de ir para as ruas saltitante, orgulhosa do que vê todas as manhãs naquele que reproduz nitidamente as imagens que o defrontam.

 

Email para um ‘Prezado Senhor’



Prezado Senhor,


Quem escreve aqui é a moça que bateu na traseira do seu carro na noite do dia 28 de maio quando voltava de um encontro no Museu da República onde foi lançado um livro escrito por uns tantos amigos. A noite seguia tranquila e com uma beleza leve tal qual um vôo de gaivota. Liguei o rádio assim que entrei no carro e como se tudo já não tivesse sido suficiente, ouvi Ney Matogrosso cantando que lá no fundo azul, na noite da floresta, a lua iluminou a dança, a roda, a festa. Ao me aproximar da Praça Tiradentes e ver o Teatro Carlos Gomes todo iluminado, distraí-me mais do que devia ainda na avenida Passos onde estava o seu carro parado em um sinal. Como poderia tê-lo visto se estava olhando para cima? O choque foi inevitável.

 
A lei é clara, prezado senhor, não há desculpas para aqueles que batem na parte de trás de carros parados em um sinal vermelho. Devo dizer que estou desolada com esse acontecimento, envergonhada até! e dou-lhe inteira razão de ter se irritado e brigado muito comigo na frente de tanta gente ainda que eu tivesse pedido de várias formas o seu perdão. Quem trabalha o dia inteiro, ganha o salário honestamente e sua tanto a camisa em horário comercial, tem todo o direito de ter uma volta para a casa sem maiores percalços. Eu sei bem disso, prezado senhor.
 
Trocamos imediatamente nossos números de telefone. Você fez questão de verificar os meus documentos e de anotar o número de minha habilitação, CPF, identidade, a placa do meu carro e ligar na mesma hora para o meu celular e ouvi-lo tocar na sua frente – certamente fazendo um mau julgamento a meu respeito. Não o condeno por isso, prezado senhor. Entendo perfeitamente o seu medo. Tanta gente ruim nesse mundo…
 
No dia seguinte, 29 de maio, ao final da tarde recebo o seu email com o orçamento do conserto de seu carro. 820 reais e mais umas despesas com táxi enquanto o seu carro estiver na oficina. Tudo bem, prezado senhor, todo esse despêndio será depositado na conta nº 3598X-9R da agência 086-R. O meu palio weekend adventure cuja placa é LBK 59X4 não colidirá mais dessa forma estúpida nem com um  ford ecosport xls 1,6 flex 2007 de placa LCJ 3XX8 nem com nenhum outro carro, pois, eu, portadora da identidade 09596XX-2, CPF 045527-X6 prometo olhar mais para frente, pelo menos enquanto estiver dirigindo. Eu, prezado senhor, que não passo de números para você reconheço que a vida poderia passar sem essas subtrações orçamentárias se as pessoas se limitassem a ficar dentro dos limites dos algarismos que a definem e que olhassem sempre e somente para a frente. Peço-lhe mais uma vez desculpas e prometo não lhe causar mais problemas. Conte com a minha palavra e com a minha carteira.
 
Mas… que me seja ao menos permitido sonhar com um outro rumo para essa nossa história… em que eu batesse na traseira de seu carro parado no sinal e tivesse a oportunidade de te dizer: amigo, meu nome é Elika, muito prazer em te conhecer! Desculpe-me, mas é que hoje estou extremamente feliz e distraída. Linda a iluminação desse teatro, não? Já viu esse espetáculo? E você dissesse: não. Mas poderia trazer a minha esposa e vermos juntos nesse final de semana. E eu pegasse o seu endereço para buscá-los, pois o seu carro estaria na oficina. E que fôssemos juntos ao teatro! Afinal… paramos ambos por causa dele e a vida é curta como a temporada de uma peça. E que ficássemos amigos e que você usasse o meu número de telefone para saber como se chega à minha casa para participar de umas daquelas saudáveis tardes de cantoria. E que brindássemos por eu não ter te machucado de forma alguma, bebêssemos sentindo a brisa no meu terraço e, enfim, celebrássemos a amizade entre os seres humanos, o amor e a paz entre nós.
 
 

Os Porões de Vovó

A minha avó reclamava de que noutros tempos, quando as moradias tinham jardins e não umas jardineiras, um quintal e não uma área interna…que havia um porão nas casas, túmulo dos objetos que não mais nos serviam. Os museus particulares de cada família. Hoje – dizia minha avó queixosa há trinta anos atrás – no máximo temos um baú e toda a nossa história tem que caber nele! O espaço e o tempo dedicados para as recordações tem diminuído com o incansável rotacionar do nosso planeta, constatava vovó receosa com o meu futuro.
Vai que o medo de dona Anna tenha sentido… Pensando bem, há poucos anos atrás, por exemplo, quando não havia os celulares, tínhamos sempre uma agenda telefônica onde guardávamos, é claro, os números de telefone das casas de nossos amigos, parentes, médicos e quem mais fosse pintando pela nossa vida. Essa agenda assim como nós, com o passar do tempo, acabava rápido, mas no caso do bloquinho cheio de nomes e de números o problema se resolvia facilmente: era só comprar um novo.  Aqueles menos apegados à organização, enquanto não comprassem uma agenda mais moderninha, usavam o espaço das últimas letras para os joões em excesso na vida. Havia, então, o momento não raro e quase que ritualístico de “passar a agenda a limpo”. Enganam-se, porém, aqueles que acreditam que essa era uma simples tarefa que exigia tão pouco raciocínio e que causasse tão pouca emoção como o apertar de um control C seguido de um control V. Não, meu querido e jovem leitor que só troca o chip de celular. Às vezes parávamos com a caneta na mão e olhávamos para o céu ainda que dentro do nosso quarto. Será que devo passar o Beto para a nova agenda? Puxa, doutor Clodoaldo morreu, gostava tanto da secretária dele… Caramba… o Eric…! Como será que ele está? Ele tinha a voz tão bonita… Eram tão comuns essas travas que havia até quem ligasse para um amor devidamente não correspondido usando a desculpa de que estava passando a agenda a limpo e… bem, se lembrou dela por acaso e resolveu dar uma ligadinha. Mas o engraçado, é que voltando o olhar novamente para as duas agendas, a velha e a nova, decidíamos, mesmo diante da certeza de que jamais ligaríamos de novo para o Anderson ou para a Aninha, que ainda assim eles iriam para a nova agenda. Simplesmente pelo fato de que ao olhar para aqueles nomes éramos remetidos a algum passado com açúcar. Um pretérito perfeito!, cuja lembrança valia a pena sentir pelo futuro afora. E, acreditem!, fazíamos isso sem ao menos sentirmos uma mágoa ou sofrermos pelo fato dessa doce recordação não ter tido o potencial de se tornar presente (Ainda que no fundo, bem lá no fundo, somente por sermos perversos, perguntássemos “ E se…?”).

E era assim que por apenas ter nos dado um bom e duradouro instante de ternura, de desejo, de saudade… que um determinado nome possuía uma força própria que nos dava uma pequena e absurda pena de deixá-lo simplesmente ali na velha agenda.

Os tempos são outros, mas os sentimentos permanecem os mesmos. Há hoje os celulares com chips e o facebook. Resgatamos no meio dessa desarrumação feroz da vida os amigos de infância e da adolescência. Não negamos os ‘pedidos de amizade’ daquela amiga que te ensinou a dar um laço no tênis na escada da cantina. Agora, no entanto, essa imagem dentro de nós co-habita com as fotos dela na Disney, em Londres e na Lapa, com o cabelo de uma cor diferente, e com seus dois filhos calçados com sapatos de velcro. E, diante a necessidade imperiosa da distração que me obriga checar o facebook, certifico, com o mesmo temor de vovó, a força do impacto da suavidade de suas fotos, meu velho amigo, contra a minha memória. Tenho a impressão de que, caso não tenhamos um certo cuidado, ‘reencontrar’ pode se tornar um sinônimo de ‘perder’ e mesmo que ganhemos muito nesse reencontro virtual, o proveito não compense. O problema é que entre acompanhar o seu presente e fazer parte dele há uma pequena diferença. E que entre ‘ver e ser visto’ e ‘lembrar e ser lembrado’ essa desconformidade se agiganta e dependendo do tamanho pode ser fatal.
Eu agora, cheia de cronologia,  me pergunto se o futuro que vovó temia era esse. Falo isso porque no passar a limpo das agendas, imaginava eu, de vez em quando, que em algum lugar do mundo havia alguém que naquele determinado momento estivesse também pensando com a caneta em riste se o meu nome merecia ou não ser passado para a nova agenda. Se havia por Deus ao menos uma hesitação…ou quem sabe uma curiosidade: A Elika… por onde andará essa menina? Essa flor de maracujá? Eu não pensava somente nos amores avassaladores da minha adolescência, mas também nas amizades que outrora foram verdadeiras e que jurávamos até que seriam para sempre. Imaginava meu nome sendo escrito e ufa! Que alívio… O que devo fazer hoje para que meu nome merecesse esses segundos de reflexão de todos que me rodeiam? Eu, cheia somente de adolescência, pensava e pensava … Sim, fazia sentido a minha preocupação!, porque ainda hoje ao abrir uma gaveta onde guardo um tanto assim de papéis e cartas escritos pelos amigos percebi como alguns ainda vivem intensamente dentro de mim. E, assim como cada um de nós morríamos um pouco quando alguém, no tempo e na distância, perdia o ímpeto do pensar em nós e jogava o nosso nome no lixo com a velha agenda (deus me livre…), será que não estamos nos matando por tanta exposição sem reflexão? sobrepondo tanta atualidade à saudade?Quanta bobagem vovó até hoje me faz pensar.

 

Para Sempre Meninos


Apesar de muitos falarem que consideram um amigo como um irmão, nós, possuidores reais desse título de fraternidade, sabemos que no fundo não é a mesma coisa. Irmão é irmão. Não está ligado ao fato de “ter que ser o nosso melhor amigo”. Ainda que tenham personalidades bem diferentes, que não se suportem e que você prefira manter certa distância, dois indivíduos quando educados exatamente pela(s) mesma(s) pessoa(s) estão unidos de uma tal forma que os fazem imprescindíveis na vida e na personalidade do outro. Esse amálgama ainda que seja ódio é o verdadeiro ‘amor fraterno’. Se for mesmo feito de amor e os irmãos tiverem sido criados na mesma ninhada, juntos e solidários ah… aí é capaz de perfumar fotografias!E foi esse perfume que fez cócegas ainda a pouco em meu coração a ponto de me fazer gargalhar e escrever.



Abri um álbum antigo na estante e transferi-me para aquela dimensão que  frequentamos sempre acompanhados mas que não nos permite levar nada do que temos no presente. Fui atingida por uma rajada de saudades ao ver a minha infância em preto e branco e dediquei-me a refletir sobre algo…e mais uma vez cá estou eu no topo da montanha olhando o horizonte pensando sobre como a minha vida sem os meus irmãos seria muito menos interessante.


Os cabelos podem ficar brancos, as rugas podem ter ‘feito residências em nossos rostos’, mas se temos pelo menos um irmão, haverá sempre um lugar dentro da gente em que seremos eternamente meninos. Ainda que a relação esteja longe de ser igual a uma planície serena e sim, cheia de altos e baixos esse amor jamais se desloca para uma área de risco – para onde vão sempre os outros tipos de amor. Frases inteiras são desnecessárias, pois o entendimento se dá muitas vezes pela troca de um sorriso que sabe lá – sabemos somente nós – que longínquas lembranças aquela troca de olhares desenterrou. E a despeito dessa tal natureza humana que é tão pérfida e traiçoeira, o amor de irmão nem sequer precisa ser verbalizado e ainda assim permanece evidente. Eles sabem sem sombras, faíscas e nódoas de dúvidas, e ninguém precisa ficar reafirmando nem em emails, nem em redes sociais públicas, nem em telefonemas, nem em blogs!, pois somente as coisas abaláveis precisam dessas evidências.


Certamente, mais pobre, mais amarga, mais só e menos Elika eu seria sem eles, os meus outros takimotos. Como viveria sem todo esse tesouro lapidado pelas horas aromáticas na infância e na adolescência que só nós, os irmãos, os nascidos em tempo hábil da carne de mãe e pai, sabemos onde está enterrado?

Ah, eu queria tanto… (parafraseando Rubem Braga)

Eu queria postar algo tão engraçado no facebook que aquele meu amigo que está sozinho do outro lado naquele seu mundo cinza quando lesse a minha postagem risse, mas risse tanto que chegasse a chorar e  que ele mesmo ficasse admirado ouvindo sua gostosa gargalhada, e depois falasse para si próprio “meodeos, que coisa mais engraçada!”.  E, então, ele esquecesse um pouco da tristeza e fosse contar a minha historinha para a empregada. Ah, que minha história fosse como uma banana-split, irresistivelmente doce, colorida e tão bonita (que tem gente que até fotografa antes de comer) que depois de  prová-la, a vida de meu amigo tão recolhida, encarcerada e enuviada viraria pelo avesso.
E que um marido que estivesse em casa mal-humorado, aborrecido com a mulher… que ele também fosse atingido pela minha postagem. O marido veria a minha “atualização”, leria e começaria a rir alto. A esposa, em outro cômodo, sorriria pensando que o seu amor finalmente compreendeu que tudo aquilo era uma grande bobagem. E ele a chamasse para mostrar a tela do computador onde tivesse algo de minha autoria. Ela inicialmente decepcionada pensaria em voltar para o quarto, mas ao dar as costas mudaria de ideia ao ouvir o som das risadas de seu marido. E que ficassem os dois rindo mais um pouco, e ao ouvir o riso do outro se lembrassem, então, dos tempos em que se apaixonaram quando riam sempre bem alto e tão juntos, e recuperassem os dois a alegria que o cotidiano cisma em tirar da gente.
Que o tempo que não passa nas salas de espera fosse insuficiente para o paciente mostrar a todos, que também estivessem impacientes, o que eu havia postado. Que uma mãe, aborrecida com seu filho o liberasse do castigo e lhe dissesse “por favor, se comporte! Eu te amo!” depois de ter lido a minha história super engraçada e o filho se comportasse porque queria ver a mãe alegre para sempre. Que no metrô lotado a minha postagem servisse para fazer do desconhecido, que te espreme e te incomoda, um novo amigo, pois ele não conseguiria não rir alto ao ver, pelo seu ombro, o que eu havia colocado no facebook, e sempre que vocês se encontrassem de novo caíssem na gargalhada só de lembrar como a amizade começou. Que as dores crônicas fossem curadas de tanta endorfina liberada ao verem o que eu fiz. Que os pastores, fascinados pela graça de minha obra, respeitassem seu rebanho. Que os patrões tratassem melhor seus empregados, que mais livros fossem abertos, que as farmácias falissem e as favelas fossem pacificadas porque todos que rissem muito lavariam sua consciência com as lágrimas de alegria que a minha postagem proporcionaria.
E que ao ser tão compartilhada, a minha atualização de status fosse traduzida por tradutores on lines diversos para línguas que nem sabemos que existem. Que um árabe qualquer arrancasse a burca de sua esposa só para conferir o seu sorriso quando ele lhe contasse o que alguém no Brasil escreveu. Que o frio da Alemanha e dos alemães fosse minimizado e mais cervejas fossem tomadas em uma alegre homenagem à besteira que eu havia inventado.
E quando me perguntassem por que eu escrevi aquilo eu desconversaria para esconder a triste verdade: que passei horas matutando uma forma de rapidamente reverter o desalento daquele amigo que anda compartilhando músicas lentas demais, fotos estranhas, que não consegue curtir mais nada e não se anima nem mais com as sextas-feiras…

Genealogia

 

Ela já era adulta quando eu havia nascido, mas ainda assim foi a minha grande companheira na infância. Enchi, muitas vezes, meu pequeno regador amarelinho para dar de beber à minha amiga. Nunca brigou comigo nos momentos em que gravava meu nome, à ponta da faca – pega no piscar de olhos da mamãe -, em sua pele. Sabíamos que era uma coisa dolorosa, mas necessária, pois as grandes amizades são seladas sempre com algum ritual super macabro. Foi bem embaixo de seus olhos que papai enterrou Pituca, meu porquinho da índia de muita estimação e foi em seus ombros que eu chorei de soluçar. Aquela mangueira cresceu bem antes de mim e foi em sua sombra que passei os anos mais lentos e ingênuos de minha vida.

Havia uma piscina de plástico no nosso quintal. Eu mergulhava de olhos abertos com eles virados para o céu e ficava observando – até quando os pulmões aguentassem – aquela cabeleira verde refratada, borrada e muito engraçada. De vez em quando mamãe mandava cortar aquela juba verdejante. Vinham uns homens com escadas, serras, cordas e luvas. Deixavam o quintal coberto de galhos que nem ficava assim de cabelo o chão do cuafer da Ivonete, ali na esquina. Minha amiga usava um corte parecido com o do Michael Jackson quando era criança.

Em um de seus fortes braços, onde papai pendurou duas cordas e fez um balanço, ela não se cansava de me ver oscilar para lá e para cá e posso jurar ainda hoje que era ela quem algumas vezes me balançava. Acho até que posso jurar mais um pouco. Eu pulei muita corda quando criança porque enquanto ora eu ora a Tata girava a corda numa extremidade, na outra era ela, a mangueira, quem segurava durante o tempo em que ora Tata ora eu pulava no meio cantando assim: Um homem bateu em minha porta e eu aaa-bri. Senhora e senhores, ponha a mão no chão (e a gente colocava a mão no chão muito rápido mesmo enquanto a corda estava passando lá no alto). Senhoras e senhores, pule num pé só (daí a gente pulava só com o direito, só com o direito!!! (agora percebo a falta de sentido e concordância na música)). Senhoras e senhores, dê uma rodadinha (bem, vocês já entenderam) e vá pro olho da ruuua-aa-aa! E quem fosse pro olho da rua direitinho podia fazer tudo de novo. Quando era a Tata a colocar a mão no chão a corda às vezes girava mais rápido. E eu jurava que não era eu.

Com um coração que não cabia no tronco, se preocupava muito em segurar os ninhos bem direitinho como as crianças seguram os pintinhos. E como aqueles que usam o indicador como um galho onde pousa um passarinho ou uma joaninha, ela vinha me mostrar os morcegos que dormiam de cabeça para baixo segurando bem firme em uma de suas ramificações. Sabe aquelas avós de antigamente que faziam biscoitos para nós, os seus netos? Então, a minha amiga, espelhando-se nelas, preparava com carinho as mais deliciosas mangas-espada que jamais comi igual em minha vida.

A mangueira ficou doente quando eu já estava formada e casada. Meus pais, que ainda moram na mesma casa, tiveram que mandar cortá-la antes que ela caísse de tão fraca que estava. Hoje vim aqui visitá-los e colocar um pouco Yuki na piscina (agora de fibra) e ao ver o quintal iluminado por esse Sol que castiga o Rio e a nossa pele no verão, lamentei profundamente como os que perderam um ente querido. Yuki teve que esperar até que o astro-rei baixasse um pouco a bola.

Dei por mim que nunca mais as cigarras cantaram na casa de mamãe. Os pardais, as rolinhas, as maritacas, os bem-te-vis e até os morcegos que sobrevoavam o meu quintal por uns tempos assim que a árvore – não mais tão bela – foi cortada, parecem que perderam a esperança. Não vi mais ninguém adejando por aqui hoje.

Certifico-me nesse ar severo, quase triste, que todos nós morremos um pouco na sua ausência, minha saudosa amiga.

 

 

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"Serei sempre seu confidente fiel se seu pranto molhar meu papel."

Enfim, tudo organizado.
A obra de um terraço que começou em maio do ano passado e que deveria ter acabado em dois meses se estendeu até janeiro deste ano. Não vou cansar o leitor com os percalços dessa empreitada e muito menos lamentar o prejuízo que tive. Quero apegar-me a essa sensação boa de completude que me fez largar um pouco o trabalho e escrever…
A primeira coisa que fiz assim quando a obra efetivamente começou foi esvaziar o meu escritório e levar toda a minha biblioteca para a casa de papai. Quando eu quero proteger algo muito precioso ajo sempre dessa forma. Isso me custou um dia inteiro de trabalho e três viagens com o carro arriado de tantas historias, álbuns, filosofias, física, contos e poesias. Esvaziei todas as prateleiras e um armário na certeza que em dois meses teria toda a minha biblioteca de volta e um terraço pronto. A construção, porém, se estendeu por oito meses e o meu mal estar começou a aumentar exponencialmente com o passar dos dias por estar vivendo numa casa sem livros e sem passado, pois, tudo o que existe nesse mundo que conte parte da minha história em letras ou em imagens estava na casa dos meus pais.
Em janeiro, grazadeus, fim de obra. Comecei o ano organizando aos poucos o escritório. Meus amigos não entendem porque não me desfaço dos livros que já li e certamente chamariam-me de louca ao ver alguns cadernos que usei ainda na adolescência mantidos sob os cuidados de um armário que se mantém sempre fechado. Ao fazer essa “mudança” mais uma vez percebi o quanto sou incapaz de aliviar o peso das prateleiras das minhas estantes ou aumentar o espaço do móvel do escritório onde guardo alguns registros feitos por mim e também alguns rabiscos feito pelas crianças.
Manusear esse tipo de material é muito diferente de arrumar um cômodo qualquer da casa. Gastei dias separando meus livros conforme o assunto, o autor e a minha idade ao abri-los pela primeira vez e deixei para a última viagem as brochuras preenchidas com a minha letra.
Engraçado. Às vezes guardamos coisas que sabemos que não terão mais nenhuma utilidade para a nossa vida a não ser… olhá-las de novo. E de alguma forma (que não tem nada ligado à praticidade) apegamo-nos a elas. Quem sabe porque ainda é permitido guardar uma lembrança boa e até uma leve tristeza que de tão leve consegue ser bonita a sua maneira; ou ainda, conceder a nós mesmos alguns minutos para confessarmos que sentimos saudades. Recordar um momento é também compreender que devemos ser felizes igualmente naquele instante, pois aquele instante também passará. Assumir a nostalgia é nos dar conta que houve momentos perfeitos que passaram, mas que não se perderam e se a lembrança deles tornar maior a nossa solidão que seja uma solidão menos infeliz.
A coisa poderia ter sido assim bem racional e equilibrada se Chico Buarque não tivesse nascido e a vida não estivesse passando tão rápido e se abrindo realmente num feroz carrossel. Diante de tantos livros e cadernos que jamais serão esquecidos num canto qualquer, cantei.  E foi assim, ao som desafinado de minha voz cantarolando “O Caderno”, entre muito pó, fungos e lágrimas que consegui organizar todo este cômodo da casa.
Cá estou eu agora. Mais calminha. Queria no início desse texto justificar porque estou me sentindo tão bem vendo as paredes coloridas com os meus livros e um armário grande, denso e fechado. Mas que bobagem a minha, não? Coisas assim simplesmente são.
(Sem nenhuma explicação).