Sobre o novo Ministro-pastor da Educação

Nunca espero que venha algo bom de qualquer coisa que Bolsonaro esteja envolvido. O quarto nome indicado para ministro da educação é um pastor. Qual o problema ser pastor nesse governo, né? Já deveríamos estar acostumados, afinal, temos a pastora Damares no comando do ministério dos Direitos Humanos e o ministro da justiça. Todos “terrivelmente evangélicos”, termo usado pelo próprio Bolsonaro.

Como professora que sou há uns 25 anos, o meu corpo chega a doer vendo essa pasta sendo alvo de grupos conservadores. Nada contra religião e tudo contra o fundamentalismo religioso regendo as leis e a conduta deste país.

Não vejo discussão alguma sobre a Educação desde que Bolsonaro assumiu. Só me deparo com várias tentativas de atender a essa alucinação coletiva. Não há projeto para educação. A escola de Bolsonaro nunca foi pautada pelo conhecimento e pela competência da pessoa e sim em agradar grupos que o apoiem.

Falei, assim que o pastor Milton Ribeiro foi nomeado, que não importa a religião dele, contanto que não a use para comandar essa pasta essencial para o futuro do país. Mantenho o que disse. Porém, agora, já tenho como traçar um perfil desse pastor depois de ter visto vários vídeos, disponibilizados pelo próprio, sobre seus valores e sua visão de educação. Não trago boas novas, mas é preciso e urgente que elas sejam explicitadas.

Para citar somente três exemplos, o pastor já:

  1.  Justificou o feminicídio: Ele afirmou que um homem de 33 anos que matou uma adolescente de 17 “confundiu paixão com amor”. Ao tentar justificar o feminicídio, o pastor ministro disse que paixão “é louca mesmo”. “Acho que esse homem foi acometido de uma loucura mesmo e confundiu paixão com amor. São coisas totalmente diferentes. Ele, naturalmente movido por paixão, paixão é louca mesmo, ele então entrou, cometeu esse ato louco, marcando a vida dele, marcando a vida de toda família. Triste”, disse.

Vê-se que o pastor nem sequer acompanha a evolução da nossa história. O que motiva homens a matarem mulheres não é o amor, nem a paixão e sim um sentimento de ódio e de propriedade, um sentimento de ter sido contrariado. Não existe “crime passional” e sim feminicídio. Quando se repete a ladainha que se matou por paixão, se induz a condição de atenuante de pena, e dá a entender que estamos falando de algo natural. Não é. É cultural. E essa fala do pastor ajuda a fortalecer essa cultura machista e contribui e muito para que outros crimes aconteçam.

  • Disse que “Quando o pai é ausente dentro da casa, o inimigo ataca. Quando não impõe, essa é a palavra, a direção que a família vai tomar (…) o homem dentro de uma casa, ele aponta o caminho que a família vai”.

Eu poderia trazer dados do IBGE aqui que apontam que as mulheres têm chefiado mais famílias – mesmo quando possuem marido – representando a quase 50% dos casos e poderia mostrar como isso não tem nada a ver com a índole da família baseado em análises feitas e publicadas. Mas não importa porque para o pastor, como ele mesmo disse, o homem é responsável por “apontar o caminho”, dando a entender, obviamente, que o caminho apontado é o da moral.

Se o pastor usasse essa fala para denunciar o abandono paterno, seria um serviço. Mas não há vídeo, por mais que eu tenha procurado, que mostre que o pastor tenha esse tipo de preocupação com quase 6 milhões sem o nome do pai no registro. Também não encontramos nenhuma fala que demonstre um átimo de inquietação com o fato de que a maioria dos domicílios brasileiros tem mulheres negras como responsáveis pelo núcleo familiar. São elas que estão mais sujeitas à maternidade solitária, fruto de uma sociedade machista e de tradição escravocrata.

Que ter pai é importante, todos nós que temos ou deixamos de ter sabemos. O ponto é que a figura paterna tem várias funções relevantes na educação e a presença de um pai dentro de casa não quer dizer que, somente por causa dela, a família terá um norte moral e bom a seguir. O pastor desconsidera dados e a complexidade da sociedade.

  • Falou com todas as letras, pasmem, que: “Não dá para argumentar de igual para igual com criança, senão ela deixa de ser criança. Deve haver rigor, SEVERIDADE. Vou dar um passo a mais, talvez algumas mães até fiquem com raiva de mim: deve sentir DOR”. O “ensinamento” está em trecho de uma pregação que pode ser encontrada no canal de vídeos do próprio ministro da educação.

Segundo o pastor-ministro, a “cura” para uma criança não vai ser obtida por métodos “justos e suaves”. “Talvez uma porcentagem muito pequena de criança precoce, superdotada, é que vai entender seu argumento. Deve haver rigor, severidade.”

Ora, senhor pastor, a Educação deve ser usada para combater a violência e, portanto, não devemos usá-la. Mais uma vez, essa fala mostra o quanto o pastor está desatualizado sobre estudos na área da Educação. Para começar a “Educação” não pode ser pensada sozinha e sim juntamente com a saúde, justiça, cultura, esporte, de relações da comunidade e muito mais.

Para além disso, está nos nossos documentos oficiais, como Base Nacional Comum Curricular (BNCC), importantes referências para a Educação como proteção contra a violência.  Entre as que mais se relacionam ao assunto, destaco as seguintes: a de argumentar e promover os direitos humanos (No 7), a  de exercitar a empatia e valorização dos diferentes saberes e identidades (No 9) e o reforço pela autonomia, tomada de decisões com base em princípios democráticos e inclusivos (No 10).

Estudos apontam que até a metade do século XX os castigos físicos e punições corporais (ou não) eram práticas educativas socialmente aceitas e recomendadas, sendo utilizadas como instrumento de disciplina moral, garantia de respeito e obediência  especialmente à figura do pai, que, dentro de uma sociedade machista, foi considerada por tanto tempo como autoridade tanto para a esposa quanto para os filhos.

Se as pessoas considerarem o que o ministro-pastor disse, descartarão um fato apontado por vários especialistas na área que as punições físicas, ameaças, privação de privilégios e afetos não levam a criança a compreender as implicações do que fez. Por outro lado, quando não usamos violência, favorecemos a internalização valores, por propiciarem à criança a compreensão dos motivos que justificam a necessidade da mudança de comportamento, colocando-a como sujeito ativo em seu processo educativo e não como alguém submissa a ele.

Em outras palavras, não faltam livros que mostram que o uso de punições não é considerado eficaz à educação da criança e do adolescente na medida em que produz consequências negativas ao seu desenvolvimento a curto, médio e longo prazo.

A verdadeira autoridade não é violenta. E, se tivermos que usar a violência para sermos ouvidos, falhamos como educadores, pastor. Toma essa verdade.

Lamento profundamente em ter uma pessoa tão retrógrada, primitiva, antiquada, preconceituosa, desatualizada, absoleta e machista comandando uma pasta essencial para um futuro menos injusto.

Seguimos na luta pela cassação dessa chapa porque não há luz no fim do túnel enquanto Bolsonaro estiver presidindo esse país.

Doutrinação marxista (?)

 

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Agora a moda é dizer que as escolas estão doutrinando alunos porque ensinam Marx. Reinaldo Azevedo, famoso colunista da Veja, disse que “o Brasil precisa de menos sociólogos e filósofos e de mais engenheiros que se expressem com clareza” condenando, como fica claro, a inserção dessas disciplinas no Ensino Médio.

Não foi sem propósito que havia – e há ainda – em muitas escolas muito mais tempos de aula de física, química, matemática do que história, geografia e agora filosofia e sociologia. O papel da ciência na formação dos jovens brasileiros para quem fez esse currículo – que muito serviu à ditadura – deveria ser somente o de possibilitar o domínio de técnicas para a melhoria do processo de trabalho, e não o domínio de técnicas de pesquisa para a investigação da realidade social brasileira. A sociologia e a filosofia sempre foram vistas como um dos melhores instrumentos para a formação de indivíduos com capacidade de questionar, investigar e compreender a realidade social. Não foi sem propósito que foi banida na época da ditadura e que agora sua inserção está sendo criticada por filósofos de direita como Olavo de Carvalho e colunistas da Veja.

Ensinar sociologia sem mencionar Marx é como ensinar física sem mencionar Newton e Biologia sem falar em Darwin. Se apresentar as ideias de um grande pensador é errado, prendam-me, por favor. Estou dando ferramentas para meu aluno pensar!

Mas sim, concordo que exercitar o início de um pensamento crítico e/ou reflexivo que leve o jovem a perceber em alguns antes desimportantes detalhes, fatos ou frases, as contradições, as desigualdades, a realidade a sua volta e que assim esse aluno possa se perceber em seu grupo, como parte deste grupo, se individuar, se compreender e compreender as diferenças, enfim, concordo que fazer o adolescente pensar em conceitos como ‘desenvolvimento social’, ‘ progresso’, ‘liberdade’ e tudo o mais pode ser extremamente arriscado para essa direita que usufruía bastante do antigo currículo sem filosofia e sociologia quando muitas escolas apenas adestravam os alunos para fazer provinhas de vestibular.

No mais, tudo que escreve é em defesa da continuidade da sociedade capitalista e sua desigualdade. Mas, nesse sentido, para esses colunistas da Veja isso não é uma “doutrinação”. A verdade é que somos CON-formados a aceitar nossa sociedade desigual desde a hora que nascemos. Isso posto, penso que ensinar Karl Marx é ensinar a ir além da aparência dessa desigualdade, é olhar para a história da formação do capitalismo e ver a necessidade de desnaturalizá-la, no sentido de entender que é construção histórica e, portanto, pode ser modificada.

Olavo de Carvalho e seus pares têm mesmo muito para se incomodar…

Para finalizar, segue a publicidade veiculada no jornal “O Globo” do programa “Fábrica de Escolas do Amanhã” da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro feita há pouco anos.

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Cabeças baixas, padronização e esteira de produção criam o forte significado de serialidade. Certamente, a analogia com o vídeo “Another Brick in The Wall” é imediata, pela serialidade da padronização dos estudantes como tijolos que formam o muro do sistema. A esteira está descendo o plano da foto, outra observação. Não há elevação de espírito com esse sistema literalmente cinza.

Entre isso e o que chamam de “doutrinação marxista”, o que é preferível para a mente de nossas crianças?

Fé na Humanidade

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Hoje fiz uma coisa extremamente inusitada e arriscada: algo que poderia acabar com a minha esperança na humanidade ou fazer com que eu desistisse de minha profissão ou algo que o valha. Coloquei o meu humor em risco. Para quem não sabe, sou professora de física, matéria essa conhecida pela sua aridez, pelo mal estar que a véspera das provas causa nos jovens e pelas piores médias em várias escolas do mundo. Ontem peguei as provas dos meus alunos para corrigir. A intenção era entregá-las hoje para eles e explicar questão por questão no quadro apontando os erros cometidos pela falta de atenção, de habilidade ou pela falta de estudo mesmo. Ao ver aquele monte de testes na minha frente, lembrei-me de minha filha – que é minha aluna desde o ano passado – reclamando do quão chatas são essas aulas em que corrijo a prova em sala de aula. Nara entende que é necessário esse tipo de coisa, mas sempre fez questão de deixar claro que não fica feliz quando é submetida a isso.

É muito desconfortável essa situação, a dizer, ver sua filha reclamando da professora-chata e a professora-chata ser eu mesma. Entendo que a Nara verbalizou algo que reflete o que todos os outros pensam mas, por falta de intimidade, coragem e excesso de noção esses outros nunca me falaram que sou insuportável em determinados dias.

Como fazer com que esse procedimento de correção de prova seja algo super interessante, mega maneraço e giga útil para todos? E se eu entregasse a prova para eles mesmos corrigirem, se avaliarem, pontuarem o que fizeram e darem sua própria nota? Pode isso, Arnaldo, aluno corrigir sua própria prova? Você está louca, Elika? Ainda não sabe que não podemos confiar nos seres humanos? Não sabe que aluno é tudo safado e só quer se dar bem? Vai dar essa responsabilidade para esse bando de adolescentes? Elika, me ouve, esquece isso… vai chover nota dez… Mas… não seria uma boa maneira de todos prestarem atenção na correção e observarem atentos os seus erros e acertos? Há melhor avaliação do que a feita por nós mesmos? Há melhor aprendizado do que enxergarmos com nossos próprios olhos o que e onde erramos? Encarar de frente as nossas deficiências não é uma das melhores formas de amadurecermos? Por que não dar essa oportunidade para eles? Vai que…

Tomei coragem e hoje às sete da manhã estava com uma turma de cinquenta alunos boquiabertos recebendo as provas que fizeram, as instruções de como as corrigiriam e o meu voto de confiança. Primeiro de tudo seria bom que usassem caneta vermelha ou de outra cor diferente da usada na resolução da prova; se houver questão em branco, gente, coloquem ‘NF‘ para eu saber que vocês Não Fizeram; para cada questão que eu resolver no quadro eu apontarei o quanto vale cada etapa dela, portanto, prestem atenção em cada parte da correção; questões objetivas são tudo ou nada, essa é a regra… preparados? Ah! Lembrem-se: eu avalio o que está escrito e não o que vocês sabem, isso é muito importante vocês terem em mente. Observem se com o que vocês escreveram eu consigo avaliar seu aprendizado, certo? Podemos começar?

Que alegria viver!

Os alunos nunca participaram tanto e estiveram  tão atentos às minhas aulas de correção de prova como hoje. As notas? Surpreendam-se: houve notas muito baixas, notas médias e notas muito altas. Super dentro do normal. Ao ver o que eles fizeram com caneta vermelha, vi muitos NFs, ou seja, eles tiveram toda oportunidade de escrever algo na questão que deixaram em branco, mas foram extremamente honestos. Em muitas questões, li na própria correção deles  “lerdo”, “para deixar de ser burro”, “uhuuuullll! acertei!!!!!”, “como errou isso???” e coisas do tipo que qualquer professor tem vontade de escrever para um aluno quando corrige a sua prova, mas é freado pelo crivo da ética e do politicamente correto.

Devo confessar. Como era a primeira vez que fazia isso me precavi. Fotografei todas as provas deles frente e verso e corrigi todas elas antes de que eles o fizessem. Anotei o que pontuei para cada questão. Tive um trabalho muito maior do que teria se tivesse simplesmente corrigido diretamente as provas e feito o que sempre fiz. Nem precisava. Comparei as notas dadas por eles com as minhas e não percebi nenhuma diferença que pudesse apontar como suspeita. Da próxima vez, acho que nem me darei esse trabalho em excesso. Já dizia Gandhi: “Nunca perca a fé na humanidade, pois ela é como um oceano. Só porque existem algumas gotas de água suja nele, não quer dizer que ele esteja sujo por completo.” Eu sempre ouvi o indiano com os olhos ao ler essa famosa frase, mas agora passarei a fazê-lo com o meu coração.

Estou mega feliz! Menos com a minha coragem e muito mais por poder testemunhar o caráter dos jovens do meu Brasil.

Converse com estranhos, meu filho.

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Quando era pequena, quer dizer, menor, meus pais me orientavam: não fale com estranhos. Eu desde os 11 anos já ia de ônibus para a escola sozinha. Antigamente era assim. Não havia um pedófilo a cada esquina (pelo menos a sensação de ter) e o play era na rua sem brinquedos e chão emborrachados.

Mas eu não entendia direito essa parada de “não fale com estranhos”. Qual a definição de “estranho”? Para mim, estranho era algo como o homem do saco, um mendigo qualquer ou um homem cheio de piercings e tatuagens de caveira. Mulher com cabelos grisalhos e verruga no nariz também. Fora esses, sempre dei papo para geral na rua. E se tem uma coisa que é legal nesse mundo é conversar com gente que não conhecemos, fazer excursão em becos que são a antítese de nosso lar e amizades com gente exótica. E se encontrasse um alienígena, que sorte teria!

Se viajo e quando viajo, o bom mesmo é explorar as pessoas. Dialogar em outro idioma, desenhar, gesticular, aprender com um nativo a falar palavrão e como agradecer são a cereja do bolo do passeio. Na verdade, nem precisamos sair de nosso bairro para nos depararmos com algo bem singular a nós. Basta conversar com o vizinho e voilá um outro continente. Bom lembrar.

Agora a mãe sou eu e meus filhos vivem conectados como qualquer um de nós. Não posso ser incoerente e hipócrita. Então, aqui em casa a ordem é: falem com estranhos, brinquem com estranhos, aprendam com estranhos.  Claro que dou orientações quanto aos mal intencionados, mas é para aproveitar à vera e à brinca a oportunidade de viver nesse albergue gigantesco internáutico sem dar a cópia da chave de nossa porta, senha de banco, telefone e endereço. Isso não. Só isso. Sem neura de precisar levantar a ficha, cartas de recomendação e atestados de bons antecedentes do novo amigo que, de repente, jamais verá pessoalmente. Estranho é legal. Estranho é maneiro. Cuidado com as exceções e vai ser feliz, meu filho.

É isso. E se você pensa que estou delirando, saiba que estou bem sóbria e consciente e que tem muita gente que te acha mega estranho. Sorte a minha se sou sua amiga. Super adoro gente esquisita.

Relações Sociais nas Redes Sociais

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O tema é polêmico. Se um psicanalista, por exemplo, não pode e nem deve ter intimidade com o paciente, como deve se comportar o professor? Ou ainda: é saudável para a relação professor-aluno que eles sejam amigos no feicebuque?

Os que dizem que ‘não’ a essa pergunta são aqueles que preferem manter a privacidade, ou melhor, não querem dividir a sua vida pessoal, suas opiniões, suas fotos de viagens com aqueles que vão aprender algo com eles. Entendem que a relação acaba e quiçá pode ser prejudicada com essa aproximação, diria até, com essa horizontalidade nessa paridade. Professor é professor e não amiguinho, já ouvi por aí. Aluno não precisa ser íntimo, aliás!, é bom que não seja.

Eu, como todos sabem, tenho muitos alunos como ‘amigos’ e a minha relação com eles se mudou foi para melhor. O respeito continuo tendo e, ao contrário do que muitos pensam, nunca alunos invadiram o espaço da rede social para falar sobre assuntos de escola. Quando o fizeram foi porque eu de antemão permiti em uma conversa. No momento que querem falar algo sério, sempre usam o e-mail. Eles já entenderam, sem sequer eu precisar explicar, como devem se comportar em ambientes diferentes e quando uma conversa deve ser oficializada. Os jovens não são tão irresponsáveis e imaturos como o senso-comum aponta.

Por outro lado, eu também passo a conhecê-los um pouco mais. Vejo o que compartilham, o que lhes agrada, o que lhes entristece… e isso tem facilitado muito o meu olhar para eles e nosso diálogo dentro de sala de aula. São todos muito diferentes como todos nós, adultos, também somos. E essa diferença, as vezes esquecida ao vê-los todos sentados de uniforme, fica mais clara e é lembrada por esse contato via rede social.

A única vez que tive dúvidas sobre essa relação foi nas vésperas das eleições. Sei que formo opiniões e que um professor pode cegar seus alunos com ideias. Questionei a mim mesma se seria ético mencionar e defender a minha posição política para eles. Decidi que poderia fazer isso de forma educativa, incentivando a leitura de livros, a buscar a veracidade das informações, a como expor um ponto de vista controverso, a fundamentar bem a escolha, a questionar, acima de tudo, as coisas que eu escrevia. Debates acalorados e muito respeitosos aconteceram publicamente. Inclusive com os pais que jamais, ainda que em posição política oposta, condenaram a minha atitude. Portanto, tendo todo o cuidado de não anuviar, tive a postura que todos os ‘meus amigos’ puderam testemunhar.

Quanto ao psicanalista e profissões afins, eu me pergunto se deve ser diferente o enfoque. Acho que estamos sendo todos forçados, via rede social, a ver aquele que nos serve de uma maneira ou de outra como um ser humano de carne e osso. Lembro-me, quando comecei a dar aula e nem sequer existia celular direito, que fui convidada para uma festa de 15 anos de uma aluna. Cheguei com meu marido no horário marcado – óóóóóóó a professora tem um namorado! – e dancei na pista como todos estavam fazendo. No meio do Abre as suas Asas e Solte suas Feras uma aluna apareceu com os olhos arregalados dizendo: professor dança? Pois muito bem, em tempos atuais, professor não só dança como vai à praia, usa roupa de banho, namora com quem ele quiser, pinta, borda, se fantasia no carnaval de borboleta e ainda escreve abobrinhas como eu. E médicos idem, psicólogos idem, dentistas idem, fisioterapeutas idem e engenheiros, bem, engenheiros são um caso à parte.

Cabe a nós, assim como esses alunos têm feito de maneira tão elegante e sábia,  entender que ninguém aqui é o monstro do Dr. Frankenstein. Não somos feitos de pedaços, somos uno. E o profissional que lida diretamente com pessoas pode continuar a ser um excelente profissional ainda depois de ser visto e considerado como um ser humano por seus alunos ou pacientes (que são, a meu ver, em essência, a mesma coisa: pessoas que precisam de uma transformação). Mas mais ainda, o aluno e o paciente podem também ser vistos em sua completude.

Há relações, ainda que profissionais, que perdem quando nos conhecemos melhor? Eu acho que não.

Japonês catando lixo. Um exemplo. Não. Pera…

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Foi lindo ver os japoneses catando lixo. Mas catar papel, ainda que seja louvável, é moleza.

Vale uma discussão de algo que não foi fotografado (com uma máquina mega moderna japonesa de última geração). Sabemos que somos uns lesados em termos de parafernália eletrônica em relação a eles. A tecnologia lá está a anos-luz de nós aqui e completamente desenfreada. Há uma doença (que começou lá): o culto aos descartáveis. Nada de conserta, tudo se compra novo. Se geramos muito lixo eletrônico em um país em que temos índio andando em volta do Maracanã, dá para imaginar o quanto eles geram de lixo eletrônico a mais que nós? Quem aqui não trocou de televisão nos últimos cinco anos? E de celular nos últimos dois anos? O pior: hoje trocamos de aparelhos sem nem esperar que eles quebrem! Lá seria diferente??? Seria sim. Muito pior. Pelo fato da tecnologia lá se modernizar muito mais rápido do que a nossa, como seria a mentalidade deles em relação a isso? Exemplar??? Doce ilusão.

Eles estão reciclando bem o lixo deles, isso é fato. Mas além da quantidade de lixo, ainda que se recicle, quero frisar outra coisa: a mentalidade consumista. No mais, reciclagem não é sinônimo de salvação. Querem que acreditemos nisso. Reciclar é bom e melhor do que não reciclar. Mas o ‘ter tanto o que reciclar’ é que são elas.

Por que, por exemplo, fala-se tanto em reciclagem e não em pôr o pé no freio do consumo??? Estranho, não? Fala-se nas escolas sobre o tema, crianças no jardim sabem separar lixo nas Europa e no Japão, eles dão show em reciclagem e quanto a isso não resta dúvida, mas e a reflexão sobre a mudança dos valores culturais que sustentam o estilo de produção e consumo da sociedade moderna? Discutem eles isso lá? Por que não?

Ao invés de construir aparelhos mais e mais modernos por que não pensam em diminuir a obsolescência (planejada) dos que estão sendo construídos? Essa mesma japonesada que catou papel nos estádios está preocupada com essa discussão? Quero ver produzir uma geladeira que dure vinte anos e ficar com uma máquina fotográfica por mais de um ano pendurada no pescoço. Isso a Globo não mostra. Isso ninguém fotografa! Por que? Já te digo: produtos ficarem “velhos” sem que os anos passem é um projeto forte que está dando muito certo para o modo de produção capitalista.

Para esses mesmos japoneses mega educados, não ter um aparelho novo é sinônimo de privação, sacrifício e dor já que a posse de bens materiais caracteriza a felicidade proporcionada pelo consumo. E quem lidera essa doença? Quem sai na frente nessa história? Os mesmos que estamos idolatrando como exemplo porque cataram papel nos estádios. Atitude louvável, reconheço, vale frisar.

A questão do lixo não é uma questão de ordem simplesmente técnica. Reciclar não é sinônimo de salvar o mundo e melhorar o planeta. O buraco é muito mais embaixo. É cultural e político e quiçá filosófico. O que é, de fato, reciclar? Reciclar muito é bom? Melhoramos se reciclamos mais e mais e mais? Evoluímos se lideramos a quantidade de materiais recicláveis? Em que medida uma sociedade que recicla muito é melhor do que outra que quase nada recicla? Em que medida catar papel em estádio é sinal que a sociedade está muito melhor educada? Que tipo de cidadão é esse que não joga papel no chão e descarta celular duas vezes ao ano?

Temos é que tomar muito cuidado para não ficarmos com os olhos mais fechados do que eles. Penso eu…

Carta aberta à minha filha Nara (que neste ano é minha aluna)

Nara querida,

Há muito penso sobre a minha prática profissional. Tenho percebido e sentido mudanças internas, mas as externas estavam ainda muito tímidas para se fazerem visíveis. Até que a sua presença fez tudo urgente em minha vida. Quando decidi ser sua professora foi não somente porque eu queria fazer mais ainda parte de sua vida, mas porque eu queria que você tivesse o melhor profissional à seu dispor e eu teria que me fazer muito superior ao que sempre fui. Ninguém, por mais física que saiba, faria para você algo com tanto amor e coragem como eu estou fazendo. Bem sabemos, minha filha, o quanto essas coisas fazem a diferença em nossas vidas. Eu sabia, como mãe, que a melhor forma de você aprender, seja lá o que for, é ensinando e que você sempre vai me ensinar quando estiver aprendendo. Como professora, por que teria que ser diferente? Em nenhum momento de sua vida, vi você aprendendo algo sentada de boca fechada e parando de aprender quando um ser em pé na sua frente decidiu que o que foi falado era o suficiente; nunca te vi assimilando qualquer coisa ouvindo somente as respostas às perguntas dadas por mim mesma. Todo e qualquer conhecimento por você adquirido começou com uma interrogação sua e não com uma afirmação minha, começou com a sua curiosidade e não com a minha autoridade materna. Você, Nara, sempre esteve no comando de seu aprendizado. Por que na escola teríamos que agir de forma diferente?

Ao ver o discurso de profissionais que ajudei a formar, percebi que estava, sem saber, imersa nesse sistema que se auto-reproduz “naturalmente” e ajudando a fortalecê-lo. Perguntei-me: em que medida eu ajudo os meus alunos a formular o conceito de ‘ciência’, ‘cientista’, ‘método científico’, ‘saúde’, ‘vida’, ‘organismo, natureza’, etc. ? Em que medida eu estimulo meus alunos a refletirem sobre esses conceitos?

Há tempos sei que a física que eu ensino é um desserviço para a sociedade. Eu estava somente fortalecendo os vínculos com correntes político-educacionais que apenas alimentam a mera reprodução de um sistema que sempre esteve a serviço da elite e que ajuda a mantê-lo. Veja que não é sem motivo que as cotas são recebidas com asco por muita gente, não é sem propósito que sou rotulada como romântica, intelectual, burra, ingênua e defensora de bandidos quando falo em direitos humanos. Eu já sabia que teria que semear com muito cuidado para fazer brotar um outro tipo de cidadão que tenha uma outra forma de vida material e cultural e seja capaz e enxergar as novas relações sociais. Não era simples, não era fácil. Estava estudando há anos de que forma sair dessa bolha. Até que você apareceu como aluna e toda a minha timidez e covardia sumiram de repente, não mais que de repente.

Sempre quis que a educação formasse um sujeito reflexivo, crítico, que fomentasse a emancipação popular e não mais que ela fosse a responsável pela formação de indivíduos acríticos, obedientes e conformistas, contribuindo para manutenção de um quadro de inércia coletiva diante das questões sociais. Na história da educação brasileira, Nara, até mesmo na época da ditadura, a legislação educacional não deixou de mencionar, como principal finalidade do processo educacional, a formação do cidadão. Há muitos paradigmas de cidadania e tenho pensado muito qual está sendo adotada na educação: para as elites condutoras ou para as massas a serem conduzidas? Analisando os documentos oficiais, a resposta foi clara. Afinal, não podemos e não devemos considerar que a escola pode se aproximar de instituições vinculadas não aos interesses concretos do povo, mas sim aos interesses dos processos produtivos? Se tomarmos em consideração que vivemos em um país que condenou milhares de pessoas a uma vida demarcada por condições de miséria, desemprego, violência, e demais indicativos de condições sociais inaceitáveis e as políticas sociais que o atual governo está implantando, o assunto ‘cidadania’ deverá ser, no mínimo, mais esclarecido. E em verdade, em verdade vos digo, minha filha, que o ensino de física, há muito praticado por mim que seguia O Padrão, contribui como um instrumental de formação política e não-reflexão sobre as mazelas do país e do mundo, além de influenciar a postura do indivíduo diante dos problemas que nos afetam diretamente como a saúde pública, por exemplo. Perdoe, Senhor, eu pequei tanto…

Eu via a necessidade de mudar, Nara, mas não sabia como. Até que você apareceu sentada à minha frente e  virar a mesa ficou fácil. O tempo urgia com seu olhar de aprendiz e eu não podia te passar de forma alguma que a física é um conhecimento compartimentado, isolado de outros. Não podia deixar você pensar que a minha aula terminava quando a de história começava e muito menos que a matemática é a única forma em que a natureza se manifesta para os cientistas. Não queria que você estudasse em uma escola em que os professores competem entre si em grau de importância da disciplina que leciona. Não me permiti estimular a ideia de que há uma diferença entre ciências exatas e todas as demais. Não posso aceitar você pensar que não pode ser engenheira porque gosta de literatura, pois nós, Nara, não somos tal qual o monstro criado pelo Dr. Frankstein. Um ser feito de pedaços. Nós fomos criados inteiros e tudo de uma só vez. A visão de você decorando fórmulas para uma avaliação me dava náusea. Não quero que você use o mínimo de seu cérebro como depósito de algum tipo de informação. Quero você usando-o para conectar os dados que lhe são apresentados. Que você analise-os, critique-os e reflita sobre eles.

Repudiei a imagem d´eu dando uma nota ruim para você e isso ter algum significado sobre a sua inteligência. As provas, definitivamente, não são capazes de medir a tua capacidade e nem a de ninguém. E as que eu fazia, antes de te ter como aluna, serviam apenas para provar quem estava mais adequado a viver no mundo do passado ou pronto para repeti-lo. Se você não estiver no seu tempo de assimilar o que tenho para te dizer, esperarei o momento certo sabendo que estou lidando com um ser altamente capaz de entender absolutamente tudo o que quiser. Não posso forçar nada porque isso seria um crime. Não posso fazer com que você acredite que errar seja uma coisa ruim e aprenda a evitar o erro. Quero ver você errando, minha filha,  e feliz com isso. Quero que você se orgulhe de seus erros e não os compare com os de ninguém. Quero você e todos os seus amigos errando quantas vezes forem necessárias até aprender e acertar. E não terei pressa para isso.

Não podia imaginar você se esforçando para alcançar a média imposta e, pela necessidade de se viver e aprender coisas mais úteis e mais belas, não se esforçar para passar com nota máxima na minha matéria. Não quero que você se contente por passar de ano se você não deu o que há de melhor em cada etapa do seu aprendizado e quero mais!, quero que isso seja o natural nesse processo.

Portanto, querida, se hoje você e seus amigos têm uma professora completamente fora do padrão, saiba que é porque estou envolvida até o último fio de cabelo para fazer que a escola em que vocês estudam, ao contrário de tantas outras, não veja o ENEM como o futuro e sim vocês como cidadãos. Luto por um CEFET em que os melhores alunos não sejam aqueles que acumulam mais informações e sim os que aprendem a gerá-las; luto por um CEFET em que os melhores alunos não sejam aqueles que se adaptam à escola e sim aqueles que fazem a escola se reinventar para melhor servi-los.

Sonho por uma escola em que os alunos não são ensinados e sim aprendam. E que todos percebam essa enorme diferença.

Com amor e esperança

Mamãe.

“Ideologia, eu quero uma pra viver.”

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É comum vermos nas redes sociais brigas entre o pessoal “de esquerda” e “de direita”. Não é a mesma coisa, mas quando leio um texto apaixonado de uma pessoa que se diz estar em um desses dois extremos, lembro-me muito das discussões no campo da religião e do ateísmo. Vejo ataques de ambos os lados, tanto nos extremos do campo religioso quanto  do político; mas neste último, algo interessante acontece. Por vezes, diante dos mesmos números, dos mesmos fatos, dos mesmos fenômenos ambos os lados conseguem justificar a escolha da posição tomada. Ou seja, ser “de esquerda” ou “de direita” consiste, sobretudo, em uma diferença entre duas percepções da realidade.

Há vários cientistas políticos, sociólogos, filósofos e historiadores que explicam essa diferença entre esquerda e direita, mas estão longe de chegar a um consenso. Há muitos que começam nos lembrando que esses termos remontam à Revolução Francesa. Lembram-se das aulas de história? Os Girondinos, à direita no plenário da Assembléia nacional, representavam os nobres e os burgueses ricos; os Jacobinos, sentados à esquerda, eram representantes da pequena burguesia e do povo. Há quem afirme que a diferença veio de muito antes. Se nem o passado nos é claro, imagine o presente. Atualmente, há até quem defenda que a diferença não existe mais.

De qualquer forma, hoje ou no pretérito conseguimos enxergar as posições de esquerda e de direita, a despeito das várias nuances em cada tempo e local no mundo. E está longe de poder ser redutível e discutível na superficialidade como é feito em postagens em redes sociais com fotos e piadas, em sua grande maioria sempre desqualificando o outro lado. “Eu corrompo, mas você corrompeu muito mais” não é o discurso que eu quero levar em consideração para essa análise, mesmo porque por esse caminho daremos não com os burros n´água, mas em um lamaçal fétido. Para expôr esse cenário, por exemplo: a direita muitas vezes se legitima em nome da experiência consolidada, da segurança e da prudência, ainda quando, na prática, vemos os conhecimentos sendo desprezados, as experiências esquecidas e as imprudências correndo a olhos vistos como os esgotos nas comunidades que colocam em risco todos que ali moram. Por outro lado, a esquerda se pauta no presente e na esperança de um belo mundo no futuro pleno de matas mais verdes, céus mais azuis e pessoas mais livres. Mas, na prática, temos posicionamentos que podemos interpretar como injustos, maldosos, e quiçá piores do que já vimos no passado. Então, de nada nos serve seguir por essa estrada porque, no plenário, onde daremos, a diferença se esvai. Ocorreu, afinal, a esperada inversão de comportamentos depois da vitória da esquerda nos últimos embates presidenciais?

Já fui ingênua e acreditei que tínhamos de um lado a falta de princípios por parte da direita e, de outro, uma tendência clara da esquerda em direção às normas éticas ou morais na forma de se conduzir em política. Reconheço que nada saiu exatamente como as minhas expectativas, e diante no novo quadro que se apresentou, perguntei-me se ainda podemos acreditar na existência de diferenças reais de comportamento, de postura prática, de atitudes mentais no grande jogo da política. Há ainda, de fato, alguma oposição fundamental, alguma separação que não seja uma bifurcação ética entre a esquerda e a direita no nosso país? É uma questão que, a meu ver, não é simples, mas que se faz urgente respondê-la, pois temos, por natureza, que agrupar forças para que lutemos por um Brasil melhor. Temos que querer, então, assim como Cazuza, uma ideologia para viver e exercer a nossa cidadania.

Também não quero cair na ladainha de ficar falando mal de brasileiro ou fazendo piada com o Brasil. Estamos vendo pelos noticiários que o problema não é só nosso. Podemos dizer que nos países ditos desenvolvidos há uma classe política “mais virtuosa” que a nossa? Claro que não. Em se tratando de política, o comportamento suspeito é universal, ainda que tenhamos um cenário específico do ponto de vista da ética pública. Para consertar o que aqui está no nosso país, precisamos como todos sabemos, de uma reforma e que esta seja, acima de tudo, uma reforma moral para que nos posicionemos diferente em relação ao comportamento dos nossos políticos que, pasmem, são os escolhidos por nós.

Mas, então, onde se dá a diferença da esquerda ou da direita se não mais a encontramos nos valores da moralidade individual dos militantes dos partidos? Podemos encontrá-la em textos preconceituosos como os de Rodrigo Constantino que escreve no jornal O Globo? Em sua coluna ele afirmou que um esquerdista é aquele que “jamais precisa se importar com a coerência, com o resultado concreto de suas ideias, com pobres de carne e osso”, pois “ele goza de um álibi prévio contra qualquer acusação, afinal, é de esquerda, ou seja, possui as mais lindas intenções”. E isso, segundo Constantino “é o suficiente. Um esquerdista pode tudo!”. Acho complicado atacar dessa forma, porque não há dúvidas que a resposta pode ser, no mínimo, muito desfavorável à posição política que o jornal, como um todo, defende. Bah. De que adianta, estimular a briga e a impaciência em ambas as partes? Eu que não quero dialogar com pessoas que sofrem da síndrome de pânico conspiratório e não sabem se defender de uma forma diferente senão a de atacar.

Hoje, penso eu, para perceber a diferença temos que observar não mais a ideologia de cada partido, e sim as maneiras diferentes de cada um de vivenciar o tempo histórico, como já me disse um dia Olavo de Carvalho. E a partir daqui, posiciono-me politicamente com o que observo e com as diferentes narrações contadas pelos mais diversos jornais de um mesmo fato e/ou diante uma mesma planilha de dados.

O meu foco está na relação que cada vertente tem com o trabalho e a educação. Verifiquei que os ruralistas, por exemplo, e os grandes latifundiários são rotulados como membros das classes produtoras. Perguntei-me sobre quem realmente produz. Onde ficam os trabalhadores de campo em alguns jornais e que porcentagem da reportagem é dada a eles? Estendi essa pergunta para vários outros meios de produção em nosso país. Procurei respostas em diversos jornais e revistas e as obtive em formas diversas, quiçá contraditórias. Sobre o programa Bolsa-família, outro exemplo, temos, diante os mesmos números, os que consideram que a bolsa estimula a inércia, premiando milhões de vagabundos e, do outro lado, temos aqueles que apontam que dezenas de milhões de brasileiros saíram da miséria e acreditam que esses vão mais longe se fiando na notícia que um milhão de “bolsistas” devolveram a sua bolsa ao Governo porque já conseguiram caminhar sozinhos. O objetivo da esquerda é claramente modificar a sociedade, mudando a estrutura social e os meios de produção, e isso exige uma organização e um empenho que, de fato, está bastante questionável. Mas continuando… Sobre o programa das cotas, temos claramente de um lado pessoas dizendo que a política está premiando os piores, ou seja, atrapalhando a “seleção natural”. Do outro lado, há os que lutam pelas cotas como instrumento de correção social, um pagamento de dívidas históricas contraídas ao longo da história. Não quero, porém, ficar no lugar-comum dessa avaliação, ainda mais sendo uma educadora. Não vou me enveredar na discussão sobre capacidade intelectual e conhecimento adquirido, mas quero, ainda assim, insistir no tema.

Na posição de professora de física que já trabalhou na rede particular, na rede estadual e que hoje trabalha na rede federal com 50% de seus alunos cotistas, levanto a bandeira que a relação escola-cidadania presente nos nossos documentos oficiais precisa ser analisada com um cuidado especial. De fato, a educação sempre esteve a serviço de um determinado tipo de cidadania. Queremos que a educação forme um sujeito reflexivo, crítico, que fomenta a emancipação popular ou queremos que ela seja a responsável pela formação de indivíduos acríticos, obedientes e conformistas, contribuindo para manutenção de um quadro de inércia coletiva diante das questões sociais? Na história da educação brasileira, até mesmo na época da ditadura, a legislação educacional não deixou de mencionar, como principal finalidade do processo educacional, a formação do cidadão. Há muitos paradigmas de cidadania e temos que saber qual está sendo adotado na educação: para as elites condutoras ou para as massas a serem conduzidas? Analisando os documentos oficiais, a resposta foi clara. Afinal, não podemos e não devemos considerar que a escola pode se aproximar de instituições vinculadas não aos interesses concretos do povo, mas sim aos interesses dos processos produtivos? Se tomarmos em consideração que vivemos em um país que condenou milhares de pessoas a uma vida demarcada por condições de miséria, desemprego, violência, e demais indicativos de condições sociais inaceitáveis e as políticas sociais que o atual governo está implantando, o assunto ‘cidadania’ deverá ser, no mínimo, mais esclarecido. E em verdade, em verdade vos digo, que o ensino de ciências praticado na maioria das escolas brasileiras, contribui como um instrumental de formação política e não-reflexão sobre as mazelas do país e do mundo, além de influenciar a postura do indivíduo diante dos problemas que nos afetam diretamente como a saúde pública, por exemplo. Quanto a isso, há muito estudo em andamento da minha parte e muitas discussões filosóficas das quais participo, mas gostaria que pensassem sobre uma questão: qual a porcentagem que a educação científica recebida nas escolas teve, citando um exemplo atual, para a atitude arisca dos médicos brasileiros em relação à vinda dos médicos cubanos com o propósito de atuarem em áreas inóspitas nas quais os médicos brasileiros se recusaram a trabalhar? Adianto parte da minha conclusão: 100%.

Ao ver médicos que ajudei a formar, percebi que estava, sem saber, imersa até o último fio de cabelo nesse sistema que se auto-reproduz “naturalmente” e ajudando a fortalecê-lo. Para quem não acredita no minha conclusão, pergunto-vos: Em que medida seus professores de ciências ajudaram a formular o conceito de ‘ciência’, ‘cientista’, ‘método científico’, ‘saúde’, ‘vida’, ‘organismo, natureza’, etc. que você tem hoje? Em que medida o seu professor de física estimulou você a refletir sobre esses conceitos? Já ouviu dizer que “a ciência é linda”? Que é “um conhecimento que se dá apoiado em bases sólidas”? Que é “objetiva por natureza e não subjetiva como as ciências não-exatas”? Quem te iludiu quanto a isso? Afinal, a ciência não pode ser entendida como prática que se define a partir de um conjunto de crenças, princípios e normas compartilhadas por uma determinada coletividade??? Para onde vai essa objetividade?

Nessa esteira, continuo o meu raciocínio: como o professor de física, ou de ciências de uma forma geral, tem contribuído para o fortalecimento de vínculos com correntes político-educacionais que apenas alimentam a mera reprodução de um sistema e, de que forma ele tem também contribuído para que atitudes sociais sejam tomadas “conscientemente” tais como a preservação da hegemonia cultural das instituições sociais ou, por exemplo, a aceitação sobre o diagnóstico e/ou medicação prescrita por um profissional de saúde? A (ingênua) segurança que você sente ao ouvir “foi comprovado cientificamente” tem origem onde?

Nosso ensino está a serviço de um sistema que, por sua vez,  está a serviço da elite e ajuda a mantê-lo. E não é à toa que “o outro mundo” defendido pelos esquerdistas é tão difícil de ser alcançado. Não é sem motivo que as cotas são recebidas com asco por muita gente. Não é por acaso que os Constantinos que escrevem para grandes jornais de ampla penetração querem que eu me envergonhe de minha posição política, dizendo que, nós, esquerdistas, temos “um salvo-conduto para defender todo tipo de atrocidade”, não é sem propósito que somos rotulados como românticos, intelectuais, ingênuos e defensores de bandidos. Tornamo-nos, é claro, figuras teimosas, concordo, mas entendo que assim tem que ser se queremos mudar. Não é atacando o outro e sim entendendo o outro que conseguiremos lutar contra o conformismo em relação ao que está aí dito “natural”. Há de se semear com muito cuidado e fazer brotar um outro Estado, uma outra forma de vida material e cultural e novas relações sociais. Não é simples, não é fácil e não acredito que alguém saiba como fazer isso.

Diante a complexidade do assunto que está longe de se esgotar aqui (e se o faço é para não cansar mais o leitor e a mim mesma), entendo, sobretudo, que não há “uma” esquerda e “uma” direita em nosso país e que ninguém absolutamente é detentor de uma Verdade Única. Vejo muitos, como eu, refluindo sobre alguns passos, repensando em tudo o que aconteceu para que as fantasmagorias do passado não voltem a nos cegar a visão do horizonte. Isto, eu sei, não me dá a garantia de que não me iludirei novamente. O que não posso é deixar de acreditar nas urnas como um instrumento de mudança. O que não posso é deixar de acreditar em um futuro que, tal como sempre cantamos juntos, espelhe, de fato, a nossa grandeza. Continuarei fazendo isso amparada sobre a minha nova concepção de diferença entre as duas vertentes políticas. Bastante atenta. Seguindo pela esquerda.

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Como o assunto é por demais complexo, não responderei a nenhum comentário e aqueles que eu considerar agressivos vou apagar. Coloco-me à disposição para discutirmos o assunto em outra seara. No mais, o texto está longe de esgotar o que sinto e li sobre o assunto. Entendo que cada parágrafo é controverso e precisa ser fundamentado com mais profundidade. Ainda assim, decidi publicá-lo para partilhar parte de minhas inquietações sobre o tema. Afinal, Minha Vida é um Blog Aberto.