Separação

Folha-Amassada

Diante do mar, respirou vagarosamente. Assim como devagar vinham os pensamentos que nadavam pelo ar cheio de Sol. Ele se foi. Ele se foi e como o mar é misterioso. Cada ondinha parece refletir uma estrela. Ela compreendeu de repente. Ele se foi como a pretensão de sabermos do que são feitas as estrelas, sentiu. A confusão das frases era a realidade mesma. Se ordenasse as palavras e explicasse de forma clara o que sentira, teria destruído a essência do seu sentimento. Ela estava se entendendo assim. Na confusão, ela percebia a própria verdade, seu próprio inconsciente impalpável. Sentia saudade? Não saberia dizer, pois, não era bem saudade já que o tinha naquele momento muito mais do que enquanto ele se prolongava ao seu lado. Era muito mais do que saudade. O que sentia não tinha nome. O sonho foi muito mais completo do que a realidade que a afogava em seus devaneios sobre ela, a realidade. Não bastava saber que estava vivendo, queria ela viver. Ser amada não pela casa em que morava, pelos filhos que pariu, mas por ser. Ela. No seu interior procurava o silêncio que tantas vezes pedia. Mas nele ficava tão perdida de lembranças de tantas pessoas que acabou transformando toda essa sensação na certeza de uma solidão metafísica. Era preciso que ela não se esquecesse de que foi feliz, mas ela sempre se esquecia. Juntou então todos os seus pedaços e decidiu não procurar mais ninguém. Buscaria a rede onde deitaria, como tantas vezes se deitou, na companhia dela mesma. Se é para ela se perder nesse mundo que seja em águas que fluam para seus interiores.

Tentou de súbito inventar alguma coisa que a distraísse. Inútil. Ela só sabia viver. Mas precisava mais. Era necessário renascer. Desfazer-se de tudo que havia aprendido com ele, do que viu com ele, e inaugurar-se em um terreno plano onde cada semente plantada era um novo futuro pleno de um significado até então inexistente. Precisava respirar como se fosse a primeira vez. Não sabia rezar e se soubesse não era o momento. A oração funciona como analgésico, acalma e adormece o desespero. E agiria, então, como a morfina que, dada para um paciente em estado terminal, precisa sempre aumentar a dose para fazer o efeito. Não. Ela não aceita rezar covardemente. Precisava sofrer e conhecer a dor integralmente para se entender. E se tivesse que orar a ponto de se tranquilizar deveria mudar-se para um igreja porque para sua inquietude o mais forte dos anti ansiolíticos e dos antitérmicos seria insuficiente. Se não o quisesse tanto, seria fácil suportar toda aquela incompreensão da parte dele e o fato de sua mão não mais alcançá-lo. Se ela se alongava naquelas conversas que lhe davam tanto prazer, notava-lhe um rosto heróico quase impaciente mas excessivamente paciente. Inútil seguir por tantos caminhos com ele quando para um só e para longe seus passos a guiavam.

Olhando o mar, ela não tinha medo de não ser amada. Ela tinha pavor de não conseguir  amar mais ninguém. Quando ele lhe abraçava, sentia a vida dentro dela correr subitamente como um rio caudaloso. Se ele a quisesse, ela nada poderia fazer. Agora ela está só diante do mar. Medo de não mais amar. Necessidade de ser amada. Quando pensava nele diante aquele grande volume de água salgada que corria sobretudo em seu rosto, respirava com cuidado como se algo no ar pudesse lhe envenenar. Passou a evitá-lo como sua presença fosse a ela dispensável. Tornou-se nuvem prestes a trovejar. Deveria aprender a ser feliz pelo mesmo motivo que se tornou desesperadamente infeliz. Chorava tanto diante daquele vasto oceano que, de repente, ficou serenamente vazia.

Há harmonia nesse mundo que roda sob seus pés e sob tudo o que lhe foge à compreensão? Não mais sofria, mas tão pouco sabia onde estava. Desabituou-se a dormir. O sono? passou a ser uma aventura assim como atravessar a escuridão mesmo durante o dia. Deveria reinaugurar-se? A justificativa de estar só talvez não tivesse outro valor senão o de lhe dar uma certa liberdade de pensar. Meu deus, como ela errava tanto. Diante dessa liberdade, agia como um animal enjaulado que ajusta seus passos e anda de um lado para outro para percorrer os quilômetros que sua natureza exige. De agora em diante estava somente dentro dela.

Então, naquela manhã cheia de sol, ela olhou para as gaivotas como se elas estivessem loucas. Tornou-se uma gata castrada repousando em um porão. Dentro de cada um daqueles dois, houve momentos que não poderiam ser rememorados falando ou escrevendo. Nem mesmo pensando. Para se lembrarem um do outro, deveriam parar um instante e sentir. E neste instante, ela riu um mau sorriso. Há coisas indestrutíveis que ela havia criado que o acompanhariam até a morte como se tivessem com ele nascido. Os momentos em que viveram quando, de fato, casados. Com poucas sementes, ela plantara uma floresta em sua pele. Ela era, portanto, dele sim, como uma poesia por ele escrita – em um papel amassado que repousa no fundo da lata de lixo.

Translucidamente Turvo.

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Ontem, depois da sessão com o terapeuta, fui para casa e dormi. Tive um sonho. Sonhei que estava em uma piscina do tamanho do mar e que havia nela três pessoas. Eu, He-Man e mais um que não conseguia ver quem era, mas que ditava as regras do jogo. Eu teria que fugir nadando. Ganharia se não fosse encontrada e perderia se fosse descoberto o local em que eu estava pelo homem que muito parecia fisicamente o super-herói dos anos 80. O tal do He-Man carregava consigo uma espécie de lanterna que servia menos para ver sob a água, que estava bem turva, do que para eu mesma, a que era perseguida, saber se ele estava se aproximando. Foi dada a largada.

Pensei: será impossível ele me encontrar. A cada braçada, eu tenho um leque de 360 graus de opção de caminhos e sempre escolherei um por onde seguir. Na terceira ou na quarta remada que eu der com meus braços, estaremos a uma distância de infinitas escolhas e será infactível meus passos serem seguidos. Não há necessidade de pressa, pois, pelas regras da matemática, jamais serei encontrada. E pensando assim no meu sonho, comecei a nadar. Percorria o que o pulmão me permitia. Parava. Olhava para todos os lados embaixo d´água e via lá de longe mesmo naquela água pouco translúcida sempre uma luzinha vindo em minha direção. Não importava o quanto me deslocava e o sucesso de minha apneia. Sempre era encontrada a despeito do tamanho da piscina, da água turva e do poder do infinito. Desisti. Emergi e gritei: não entendo!

A pessoa que eu não conseguia ver o rosto direito me explicou: você cometeu um erro lógico. A piscina é enorme mas tem fim. As ondas que você faz batem na parede e voltam triplicando a chance que já não era pequena de encontrar você. Agora veja, eu havia cometido um erro lógico e a explicação não fazia o menor sentido para qualquer gigante da matemática.

Se nosso amigo Freud vivo estivesse reforçaria que todos esses símbolos oníricos são particularidades do nosso inconsciente. Acreditando nessa hipótese, fiz de minha própria cama um divã ao despertar desse sonho. O que era o mar? Quem seria o He-Man? Por que daquela luz? Que diabo de erro lógico que cometi? Mais ainda, por que a lógica não explicou um movimento simples da vida? Não vou tentar aqui esclarecer cada um dos símbolos que apareceram, mas gostaria de analisar o sentimento de ter cometido um erro (de lógica) e a explicação dada para o problema – um jogo, no caso – não fazer o menor sentido.

Lembrei-me, então, o quanto saí incomodada da minha última visita ao terapeuta. Percebi que estava havendo um esforço em ser entendida, não por ele, mas por mim mesma. O profissional agia corretamente, fazia perguntas que me ajudavam a pensar, a compreender a minha demanda, a interagir profundamente comigo mesma e, no mergulho a lugares nunca antes visitados dentro de mim, a fazer com que eu enxergasse com mais clareza essa miscelânea de sentimentos tão comuns a todos nós: medo, pena, insegurança, solidão, saudade, dor, alegria, culpa e por aí vai. Comecei a pensar em tudo o que nos fizeram acreditar e na quantidade de fármacos consumidos por todos que conheço, na agenda lotada de qualquer bom ou mau analista, na vida que seguimos como se tivéssemos a deriva sem muito o que fazer por nós mesmos, do medo que temos de gritar o quanto estamos cansados e do quanto não nos ajustamos a nenhum modelo. Estamos ficando doentes porque querem (nossos amigos, nossos pais, o padre, o pastor, o diabo) explicar nossos sentimentos de forma lógica e querem que nos entendamos para nós mesmos. Precisamos, para viver nessa sociedade, que nossas atitudes sejam explicáveis. Que para cada efeito tenha uma causa ou várias, vá lá, mas que ao menos todas elas sejam identificáveis e reconhecidas.

Onde está escrito, além de postagens supérfluas e livros religiosos, que amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural, que amor de verdade é o que dura até a morte, que casamento que dá certo é aquele em que os cônjuges não se separam, que devemos nos sacrificar pelo bem mental de nossos filhos, que o nosso amado está feliz por simplesmente estar ao nosso lado, que só se ama uma pessoa de verdade na vida, que só se pode amar um de cada vez, que no amor há felicidade, que não há amizade entre pessoas que já foram amantes, que ser fiel é contar a verdade, que devemos ser felizes, que quem ama entende o amado e que o amor eterno não acaba e que, se acaba, não era amor? Qual foi o deus que disse isso? Onde está escrito que devemos ser compreendidos?

Se as regras formam uma pátria, o que vemos é um monte de gente querendo e  ao mesmo tempo morrendo de medo de ser exilado. Não sabemos como viver sem as rédeas e sem colocá-las em alguém, agir dentro de uma teoria que já está estabelecida parece mais fácil, mas não há quem, ao colocar a cabeça no travesseiro, diga amém. A vida não cabe em uma teoria e muito menos é feita de várias delas. E o inverbalizável? Cadê o espaço para os impulsos, as emoções, as fantasias, os sonhos? Ora bolas, nem que fossem centenas de normas dariam conta do recado. Impossível enquadrar o grito, o que arde, o que lateja. Já dizia Cazuza, há o certo, o errado e todo o resto. Amar é bom, não amar é ruim. Entre amar e não amar o que temos? Nada? Qual o quê. Uma infinidade de sentimentos isso sim, uma confusão dos diabos, um desassossego dos infernos, saudades gigantescas, necessidades de afeto urgentes, desejos que não se adaptam a essa meia dúzia de regras do bom comportamento que nos impuseram.

Estamos todos vivendo certinho dentro das normas, seguindo corretamente o que nos ensinaram, nossa casa está arrumada, nossos filhos estão jogado alucinadamente videogames mega modernos na sala em total segurança, tudo está em seu devido lugar. Mas então, senhor, por que estamos tomando remédios para dormir?, por que se vende tanto livro de auto-ajuda?, por que ficamos horas embaixo do chuveiro olhando para o zero?, por que queremos sumir do mundo?, por que estamos deixando para trás tantos afetos que poderiam nos bombardear de hormônios?, por que nos sentimos injustiçados pelo destino?, por que temos que viver ponderando tudo e negando as paixões que insistem em nos aparecer, sejam elas por outro homem, outra mulher, por um livro, por um esporte, por uma ideia ou por um ideal?

O problema é que todo o resto não entra no regulamento que devemos seguir e é o que, sinto lhe dizer, nos faz sentir vivos: nossa ausência total de certezas, nossa pureza que cismam em não acreditar nela só porque crescemos, nossa vontade de ir ali comprar um cigarro, nossa sinceridade ao dizer que não fizemos por mal, nossa vontade de fazer o mal, nossa obsessão em querer o bem, nosso desejo de ir embora, nossa ânsia em voltar, nosso asco em viver em paz, nossa angústia de não conseguirmos ser felizes porque sabemos, lá no fundo que, viver em paz é a morte em vida. Nossa. É tudo tão complicado…

Mesmo sem nada entender, recusei-me a ficar refém de tudo o que construí. Separei-me de quem namorei desde meus quatorze anos. O difícil dessa separação, perceba, será viver com ele (e não sem ele) em minha vida. Nem que ele tivesse morrido poderia a presença de tão boa companhia deixar de ser sentida por onde quer que eu me esconda. Não é necessário que Chico me responda pra onde vai o meu amor quando o amor acaba porque nada aqui dentro acabou. Transformou-se bastante, é verdade. E o suficiente para que eu aceitasse as minhas dúvidas impublicáveis que foram incompatíveis com as certezas de quem dormia cantando ao meu lado. Permiti-me o tormento de não ser única. Admiti que há um deus um diabo e o todo o resto morando em meu corpo.

Encafifa-me agora, ou melhor, está muito difícil de eu aceitar a incompressibilidade de que é concebível, mesmo diante desse mar de possibilidades que se agiganta na minha frente e que nele sigo remando com meu próprio corpo, alguém me encontrar com facilidade.

Prossigo eu apavorada tal como estivesse mergulhado em uma piscina gigante repleta de água turva com toda essa estranha gente que me habita. Sem nada entender. Sem nada enxergar. Mas meu deus. Como esse fluido que me circunda me mantém aquecida e me convida –  pela sensação que experimento em minha minha pele – que eu vagueie dentro ele.

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A obra que ilustra esse texto é do artista Sérgio Ricciuto.