Tai Xi Xuan

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Hoje de manhã, um Domingo de Maio, fui correr no Parque Madureira a despeito de ser domingo, de manhã e em Madureira. O parque sempre me reserva surpresas. Por mais que o tenha frequentado, nunca volto para casa do mesmo jeito. Há sempre alguma coisa singular para onde vai o meu olhar. Porém, hoje, apesar de tanta coisa inusitada que já presenciei, vi algo estrambólico. Cada coisa excepcional que vejo no parque tem um quê de, sei lá, plural. As coisas diferentes acabam se igualando naquilo que as distinguem. Explico-me com exemplos: bateria de escola de samba formada por senhorinhas que gargalham, velhinhos aprendendo a andar de skate, gordos patinando em grupo, pique entre crianças e adultos na quadra de futebol… percebem a  semelhança? Então. O que vi hoje foi além de desigual, também divergente.

Uma senhora, negra, acima do peso, toda vestida de preto, com fones no ouvido, óculos escuros e um leque grande e vermelho fazendo uns movimentos mega esquisitos. Todos que passavam por ela olhavam espantados e riam do ser sui generis que estava ali de boa, alheio a tantas calorias sendo perdidas pelos atletas de domingo. A minha corrida de 5 km implica dois vai-e-vens na extensão do parque, de forma que passei por ela quatro vezes. Na primeira vez pensei: o que é isso, jesuis? Na segunda, meodeos…o que é isso, jesuis? Ainda aí? Na terceira não aguentei. Parei. Estava achando tão engraçado que pedi para filmar. Ela consentiu.  Minha intenção não era, confesso, plena de pureza. Iria postar o filme no feicebuque e praticar bullying com ela. Filmei. Depois, para disfarçar, fui lhe perguntar que diabos ela estava fazendo e eis que se inicia um diálogo sem precedentes em minha vida de Parque Madureira.

– O que é isso que a senhora está fazendo? – Perguntei filtrando os meus pensamentos.

– Tai Xi Xuan Xen – Ela respondeu depois de me pedir para repetir a pergunta assim que tirou os fones do ouvido.

– A senhora aprendeu isso onde? – Questionei sorrindo por dentro.

– Na Zona Sul.

Daí pensei. Logo vi. Essa coisa está muito diferente de tudo que vi por aqui. E falei:

– Logo vi. Aqui não tem dessas coisas.

– Olha, tem Tai Xi no parque. Já vi aulas abertas aqui. – Disse ela giga simpática.

– Ah sim, mas não são legais. Também já vi. Mas parecem que não permitem um mergulho profundo. Não sei, mas falta muito para ser o Tai Chi Chuan que vejo nos filmes.

– Nossa. Como você é inteligente! Como percebeu isso?

– Pela falta de comoção. – Respondi honestamente.

– Então, menina, lá na Zona Sul, de fato, tem escolas muito melhores. Faço isso há dezoito anos e hoje sou instrutora. Hoje, pela minha prática, sei que posso ensinar.

– A senhora falou que faz Tai Xi Xuan Tchen?

– Não tchen. Xen. Cê agá é ene. Ele é diferente do Iangue.  O Tai Xi Xuan Iangue tem maior flexibilidade e movimentos suaves, lentos, amplos, interligados, de ritmo homogêneo, sem interrupção. Já no Xen, os movimentos podem ser maioritariamente lentos ou rápidos e explosivos, quando pratica-se o fagin, além de assimilar a defesa pessoal.

– Entendo. A senhora pratica isso aí com que frequência?

– Ah, minha filha, todos os dias. Alcançar o equilíbrio requer um esforço diário.

– Mas nunca vi a senhora por aqui. – Se visse antes, com certeza, mas com certeza messssmo não me esqueceria.

– É que pratico em vários lugares diferentes do Rio. A monotonia faz mal ao espírito. No mais, tenho que aprender a me adaptar em ambientes diferentes e a me desconectar deles. Por exemplo, está todo mundo aqui rindo de mim e eu estou cagando para todos eles. Isso é fruto de muito equilíbrio.

– Ah sim… Então… sendo sincera, foi isso que me chamou atenção na senhora. A sua independência.

– Mas você, menina, é muito inteligente mesmo. O que você faz?

Nesse momento, pensei que dependendo do que falasse, ela iria tentar traçar o meu perfil ou questionar a minha escolha como tantos fazem. Professora de física definitivamente não era uma boa resposta. Dada a pressa e a intuição respondi:

– Sou leitora.

– Ah. Entendi tudo. Você está me lendo agora!

– Justamente. A senhora é muito inteligente também! – Disse com um sorriso super sincero. – E o que a senhora estava ouvindo?

– Ouça você. – E me deu os fones. Ouvi uma música celeste. Quase dormi em um minuto que me permiti viajar naquele som debaixo de um Sol e em pé em cima de um asfalto.

– Muito bom! Sem música não rola os movimentos?

– Rola, mas ela facilita.

– Tipo uma enzima.

– Menina, mas como você é inteligente!

– E o que a senhora sente depois que faz isso dessa maneira? – Perguntei sendo bem franca porque definitivamente aquilo não era Tai Chi Chuan Chen.

– Não consigo te explicar.

– Entendo. Eu tenho que fazer e sentir a essência da coisa que é indecifrável, inexplicável por palavras. – … – Sim, senhora, eu sou muito inteligente!

Rimos as duas. Expliquei a ela que nunca fiz nada, mas sei que há um mundo onde isso tudo existe. Disse que entendo a viagem dela porque, de certa forma, quando batucamos todos juntos no terraço, quando todos os corações batem na mesma frequência, a alma se lava e tornamo-nos mais leves quando nos livramos de certas impurezas cantando. Disse que tenho enxaqueca e tomo remédio todo dia para dormir.

– Você está buscando alternativas para isso, não? Sabe que a felicidade plural ajuda, mas percebe que não é suficiente. O seu equilíbrio deve ser buscado por você e inteligente como você é, entendeu isso. E por isso você parou para conversar comigo porque me vendo sabe que eu consegui dominar a minha mente. Ou que, pelo menos, domino muito melhor do que você.

– É. Bem. Na verdade, não foi bem isso. – Gaguejei envergonhada.

– Foi sim, minha filha. Acredite.- Disse ela levantando os óculos escuros e olhando para além das minhas pupilas. – E se precisar de mim, anota o meu telefone que te ajudo no que precisar.

Telefones devidamente trocados.

Como disse, o parque sempre me reserva surpresas e sempre retorno diferente para casa. Mas hoje voltei com um regalo valioso. Uma nova amizade.

Zero pro preconceito. Ponto pra poesia.

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Se quiserem conhecer minha nova amiga:

Tai Xi Xuan Xen