Dancei.

dança

Sexta-feira passada, fui a um baile aqui perto de casa. Isso mesmo. Baile. Na porta, em letras gigantes, estava escrito “Baile para quem quer dançar! O melhor da dança de salão aqui! Toda sexta-feira!”. Do lado de fora, eu ouvia uma banda. Música ao vivo?! Beleza.

Abrindo parêntese:

Desde que a sofrência se apoderou de mim por conta de minha separação tenho indicação para anti-depressivo-tarja-preta. Vejam vocês, eu, a rainha do alto astral, estava com tudo em baixa. Humor, auto-estima, vontade, inspiração, concentração, fome, sono,… eu havia me tornado um bagação ambulante. A saúde já estava para lá de péssima e eu me recusando terminantemente a tomar remédio. Já virei escrava da amitriptilina para dormir. Há quatro anos toda noite tenho que enfiar um comprimido na boca para ter uma qualidade de sono razoável. Há três tento me livrar disso e não consigo. Ficar dependente de outra droga? Nananinha. Estava deprimida mas bem atenta.

Sei que tudo é químico. Felicidade, medo, paixão, tristeza… tudo isso não passa de um desequilíbrio de substâncias dentro de nós que somos vistos pelos psiquiatras como compostos por adrenalina, noradrenalina, feniletilamina, dopamina, oxitocina, serotonina, endorfinas dentre outras ‘inas’ que não sei o nome. No meu caso, por exemplo, precisava de injeções de dois litros de serotonina na veia. A serotonina é um  tipo de neurotransmissor que atua no cérebro regulando o humor. O bom humor, para ser mais exata. A minha taxa da serô estava negativa.

A pergunta que me fiz foi: como será que os índios ou os orientais curam a depressão? Esse costume de tomar remédio é universal? Claro que não. Há muitas culturas que abominam o uso de fármacos e resolvem seus problemas de outra forma. Com o pouco de força que me restava, resolvi estudar a fundo tudo isso e percebi que teria, literalmente, que me mexer. A prática de atividades aeróbicas durante trinta minutos pelo menos três vezes por semana, disseram-me vários monges, reduz quase pela metade os sintomas de uma depressão moderada, que era o meu caso. E se associarmos à música, a coisa fica ainda mais eficaz. Isso posto, resolvi seguir o conselho de meu amigo Daniel e me matriculei na melhor escola de dança de salão aqui no Rio. E lá se vão dois meses.

Hoje faço coisas que há dez anos atrás nem sonhava em fazer, tipo dar uma volta para me divertir somente com a minha companhia. Na dança, muito evoluí, ainda não saí do dois para lá e dois para cá na aula, mas já perdi a vergonha e permito-me ser conduzida por ilustres desconhecidos, o que é um avanço, para mim, mais do que considerável.

Fecha parêntese.

Bom, como estava dizendo, na sexta acabei entrando em um “Baile para quem quer dançar! O melhor da dança de salão aqui!”. Qualquer oportunidade de treinar meus passinhos recém-aprendidos é super bem vinda. Passei um batom, dei umas borrifadas de perfume no cangote e entrei. Sozinha. Mega hiper bem de cabeça.

Estava vestida como sempre. Uma calça, uma bata e uma sandália plataforma que disfarça muito bem minha altura.

Mal adentro o recinto levo um susto com o que vi. Um bando de senhorinha de mini saia e salto agulha circulava e dançava pelo salão. Os cabelos pareciam moldados por bobs, aquele negócio que dona Florinda usa na cabeça. Os decotes iam até o umbigo e as blusas mostravam os ombros sendo que alguns eram tatuados! Os senhorzinhos estavam todos muito bem vestidos com sapatos lustrosos. Eu estava, minha gente, na verdade, em um baile da terceira idade. Muito famoso aqui no subúrbio, diga-se de passagem. Eu que não o conhecia. Ainda bem que a minha cabeça estava super boa…

Enquanto observava e me dava conta de onde havia parado, pensava que se terceira idade é quando eu tiver coragem de sair assim de casa com aquela alegria  e desenvoltura toda, a minha aflição por estar envelhecendo tem destino certo: o ralo. Ao meu lado, estava uma senhorinha com meia calça brilhosa dançando sozinha com os braços abertos e cantando alto a música segurando um copo de cerveja. Percebendo a minha timidez e meu zóio atento a tudo, convidou-me para me juntar a ela. Recusei porque compreendi que para minha cabeça melhorar e chegar naquele nível de desprendimento eu precisaria fazer capoeira, dança africana, correr meia maratona e nadar até o outro continente para que meu corpo produza metade da quantidade de serotonina e dopamina que corria no sangue daquela senhora.

Não demorou, no entanto, para um senhor com a barriga protusa me puxar para um forró. Daí, meu irmão, foi irresistível. O rapaizinho mandava super bem e mesmo sem eu saber quase passinho nenhum, ele me colocava para rodopiar como uma bailarina no meio do salão. Só deu eu nos braços do Seu Barriga. Ao final de três músicas, estava já soltinha e me juntei a senhorinha do parágrafo acima e fizemos uma dupla de Beyoncé e Shakira pelo resto da noite. Eu, claro, de cara limpa sem uma gota de álcool ingerida porque, como muitos já sabem, tenho carência de aldolase que é a enzima do fígado que age na segunda etapa da metabolização do álcool. Daí que o subproduto da primeira etapa da metabolização é tóxico e me causa taquicardia e vasodilatação. Fico vermelha como um tomate e se alguém colocar a mão na minha cabeça consegue medir meu pulso. Olha aí a química de novo.

Enfim, eu me rendi. Mergulhei sem medo em um ambiente que jamais havia enfiado sequer a pontinha do dedo do pé. Não me preocupei em justificar a minha solidão e muito menos me envergonhei dela. Pelo contrário, habitei-a com percepções e muita música animada. Não fiquei menos sozinha, é verdade, mas povoei meu deserto.

Não sei se coloquei um ponto final e estou pronta para virar a página. Gosto de usar todos os recursos possíveis das vírgulas e reticências e conjugar o pretérito imperfeito e o futuro do subjuntivo com todos os verbos cabíveis. Se ele me ligar… Quando ele me convidar para um cinema… Se eu pedir… Fujo de pontos finais e sigo sonhando, querendo, relevando. Mas estou compreendendo que o expediente de muitas pontuações está se esvaindo e, pela sexta feira passada, percebo-me cada vez menos preocupada com isso.

Ainda não sei andar de mini-saia, mas um vestidinho com uma cintura apertada e um scarpin já foram providenciados para os próximos bailes. Do que restou do meu amor-próprio eu fiz uma muleta; da minha angústia, uma escada, e das minhas quedas, faço agora, passos cada vez menos desajeitados de dança.

Separação

Folha-Amassada

Diante do mar, respirou vagarosamente. Assim como devagar vinham os pensamentos que nadavam pelo ar cheio de Sol. Ele se foi. Ele se foi e como o mar é misterioso. Cada ondinha parece refletir uma estrela. Ela compreendeu de repente. Ele se foi como a pretensão de sabermos do que são feitas as estrelas, sentiu. A confusão das frases era a realidade mesma. Se ordenasse as palavras e explicasse de forma clara o que sentira, teria destruído a essência do seu sentimento. Ela estava se entendendo assim. Na confusão, ela percebia a própria verdade, seu próprio inconsciente impalpável. Sentia saudade? Não saberia dizer, pois, não era bem saudade já que o tinha naquele momento muito mais do que enquanto ele se prolongava ao seu lado. Era muito mais do que saudade. O que sentia não tinha nome. O sonho foi muito mais completo do que a realidade que a afogava em seus devaneios sobre ela, a realidade. Não bastava saber que estava vivendo, queria ela viver. Ser amada não pela casa em que morava, pelos filhos que pariu, mas por ser. Ela. No seu interior procurava o silêncio que tantas vezes pedia. Mas nele ficava tão perdida de lembranças de tantas pessoas que acabou transformando toda essa sensação na certeza de uma solidão metafísica. Era preciso que ela não se esquecesse de que foi feliz, mas ela sempre se esquecia. Juntou então todos os seus pedaços e decidiu não procurar mais ninguém. Buscaria a rede onde deitaria, como tantas vezes se deitou, na companhia dela mesma. Se é para ela se perder nesse mundo que seja em águas que fluam para seus interiores.

Tentou de súbito inventar alguma coisa que a distraísse. Inútil. Ela só sabia viver. Mas precisava mais. Era necessário renascer. Desfazer-se de tudo que havia aprendido com ele, do que viu com ele, e inaugurar-se em um terreno plano onde cada semente plantada era um novo futuro pleno de um significado até então inexistente. Precisava respirar como se fosse a primeira vez. Não sabia rezar e se soubesse não era o momento. A oração funciona como analgésico, acalma e adormece o desespero. E agiria, então, como a morfina que, dada para um paciente em estado terminal, precisa sempre aumentar a dose para fazer o efeito. Não. Ela não aceita rezar covardemente. Precisava sofrer e conhecer a dor integralmente para se entender. E se tivesse que orar a ponto de se tranquilizar deveria mudar-se para um igreja porque para sua inquietude o mais forte dos anti ansiolíticos e dos antitérmicos seria insuficiente. Se não o quisesse tanto, seria fácil suportar toda aquela incompreensão da parte dele e o fato de sua mão não mais alcançá-lo. Se ela se alongava naquelas conversas que lhe davam tanto prazer, notava-lhe um rosto heróico quase impaciente mas excessivamente paciente. Inútil seguir por tantos caminhos com ele quando para um só e para longe seus passos a guiavam.

Olhando o mar, ela não tinha medo de não ser amada. Ela tinha pavor de não conseguir  amar mais ninguém. Quando ele lhe abraçava, sentia a vida dentro dela correr subitamente como um rio caudaloso. Se ele a quisesse, ela nada poderia fazer. Agora ela está só diante do mar. Medo de não mais amar. Necessidade de ser amada. Quando pensava nele diante aquele grande volume de água salgada que corria sobretudo em seu rosto, respirava com cuidado como se algo no ar pudesse lhe envenenar. Passou a evitá-lo como sua presença fosse a ela dispensável. Tornou-se nuvem prestes a trovejar. Deveria aprender a ser feliz pelo mesmo motivo que se tornou desesperadamente infeliz. Chorava tanto diante daquele vasto oceano que, de repente, ficou serenamente vazia.

Há harmonia nesse mundo que roda sob seus pés e sob tudo o que lhe foge à compreensão? Não mais sofria, mas tão pouco sabia onde estava. Desabituou-se a dormir. O sono? passou a ser uma aventura assim como atravessar a escuridão mesmo durante o dia. Deveria reinaugurar-se? A justificativa de estar só talvez não tivesse outro valor senão o de lhe dar uma certa liberdade de pensar. Meu deus, como ela errava tanto. Diante dessa liberdade, agia como um animal enjaulado que ajusta seus passos e anda de um lado para outro para percorrer os quilômetros que sua natureza exige. De agora em diante estava somente dentro dela.

Então, naquela manhã cheia de sol, ela olhou para as gaivotas como se elas estivessem loucas. Tornou-se uma gata castrada repousando em um porão. Dentro de cada um daqueles dois, houve momentos que não poderiam ser rememorados falando ou escrevendo. Nem mesmo pensando. Para se lembrarem um do outro, deveriam parar um instante e sentir. E neste instante, ela riu um mau sorriso. Há coisas indestrutíveis que ela havia criado que o acompanhariam até a morte como se tivessem com ele nascido. Os momentos em que viveram quando, de fato, casados. Com poucas sementes, ela plantara uma floresta em sua pele. Ela era, portanto, dele sim, como uma poesia por ele escrita – em um papel amassado que repousa no fundo da lata de lixo.

O Amor que Me Escapa

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Quisera eu refazer o Meu Amor, como no instante da Criação onde não havia o tempo, portanto, o passado, como se tivesse reduzido a um nada todas as decepções e dores que causamos um para o outro e qualquer indício que elas permeariam o nosso futuro. Quisera eu refazer um universo novo sem pretéritos imperfeitos com exceção de uma coisa: que ele, também, ainda quisesse viver ao meu lado.

Sinto-me na obrigação de lembrar sempre o que vivemos juntos, tal como um imigrante de outro continente se esforça por não esquecer a língua natal para poder em muitos momentos recordar do berço pátrio que, por certo, não tornará a ver. Não trabalho as minhas recordações na esperança de descobrir uma lei de causas e efeitos e dar o fenômeno como compreendido. Tudo o que nos acontece pelo qual o amor permeia, o melhor a fazer é não tentar entender, posto que, no que possuem de inesperado e imprevisível parecem não regidos por leis racionais e sim mágicas, quiçá divinas. Diante o espetáculo do mundo dos sentimentos, impossível fazer o elo entre dois momentos, tudo fica tão incerto e anacrônico como se estivéssemos no plano onírico.

Eu, amante, plena de sofrimento e uma imaginação permanente, busco, em vão, adivinhar por qual motivo sou incapaz de atrair para mim o objeto amado. Ou então, se o atraio, por que ele não se aproxima e insiste em se comportar como a Lua que mantém a mesma distância da Terra tendo em vista a enorme força de atração entre esses astros? Mais esquizofrênica ainda é essa ideia que se apossa de mim e me impede, covardemente, de querer ver quem ainda amo. Por amar, não posso sequer sentir o cheiro sem que seja perturbada por um desejo de tudo o mais que me tira, perante a quem amo, a sensação anestésica de amar.

Não importa o que se tenha ouvido, lido, estudado e vivido. Diante de um Grande Amor, somos como Einstein em tempos de escola. Queremos a imaginação e não o que nos querem impôr. E preparamos os elementos que nos iludem como preparam para um doente pratos deliciosos, mas que piorará seu estado de saúde ao ingeri-los. Somos mestres em aceitar a existência própria de uma miragem, de dar a certas pessoas que vemos uma áurea que só emergem nesse encontro e, depois, desenvolvida somente em nós – que seguiremos recusando um outro amor, pois nos acostumamos por demais ao lugar no qual habitávamos. Toda música nova, toda pintura diferente, todo estilo novo de escrever sempre há de nos parecer, ainda que preciosos, por demais fatigantes e dão-nos a impressão de uma falta de prazer. Não queremos orientações alternativas, desvarios da nossa bússola interior.

O mal mais cruel de tudo é que sou eu mesma a artesã consciente e paciente do que me adoece. A única coisa que me interessa continuo tornando impossível, criando pouco a pouco, pela distância que se prolonga de meu amor, não a sua indiferença, mas a minha, o que vem a dar no mesmo. Nesse preciso instante em que me perdi de Meu Amor, pois estou resolvida a não mais lhe pedir atenção, sinto por ele mais e mais ternura e tudo o que sentia quando podia vê-lo todos os dias; nesse preciso instante a ideia de que algum dia sinta o mesmo por outro homem parece-me odiosa porque me rouba a outra muito mais cara: a do Amor Verdadeiro. Movimentei a minha vida para uma determinada pessoa e, quando ela não mais está comigo, prefiro viver prisioneira da moradia que só a ela era destinada do que a liberdade que pixa os muros dessa casa feita com tanto carinho. Senhor, desacorrente-me dessa escravidão.

Ando tão sozinha… Por mais que eu escreva, que eu converse, a verdade que quero nas palavras de nada adianta diretamente pois sofre de evidências. Sempre dizemos o que necessitamos dizer e que o outro jamais alcançará, pois o dizer é coisa destinada somente para nós mesmos. Será necessário que se decorra o tempo para que se possa formar em quem me ouve e me analisa uma verdade da mesma espécie que a minha. Como o adversário político que, diante das provas e de todos os documentos, considera traidor e ladrão o da doutrina rival e quando passa a acreditar no que lhe falaram já não mais interessa àquele que tentava esclarecê-las, isso pode acontecer com o leitor, o amigo e o analista. Esses, muitas das vezes, pioram tudo ao dar-nos conselhos deformados pela miopia que cada um carrega. Mas, nesse trabalho de acabar com O Amor, todos que se envolvem estão muito longe de desempenhar o papel tão importante como o de duas pessoas que, por excesso de bondade de um lado e do outro, de egoísmo, costumam desfazer tudo no tempo em que tudo estava para se consertar. Porém, dessas duas pessoas não guardamos mágoa nem conseguimos odiá-las pela razão que uma delas, a última, é quem eu amo e a outra, eu mesma.

Mas… quem sabe a felicidade, de novo, chegará para mim? O risco que corro é ela chegar quando não a poderei desfrutar, quando já não mais restar a saudade por ter ela virado hábito e, portanto, indolor e cômoda como um vizinho em silêncio. Tomara que, ao aproximar da felicidade, ainda que tardia, ela seja a mesma cuja falta me fez tanto sofrer. Só há uma pessoa capaz de resolver essa situação. Os que padecem de amor são, como se dizem aos doentes, os seus melhores médicos. Como não podemos achar consolo fora que provenha de quem amamos, em nós mesmos tratamos de fazer o remédio. O diabo é achar a fórmula correta para a droga que, ao menos, amenize os sintomas. Enquanto não a encontro, continuo elocubrando e rindo à toa quando consigo em um cochilo sonhar que estou feliz ao lado dele e ele me diz que nunca mais me fará padecer.

Essas constantes visões, essas miragens, esses devaneios e desejos, no que tocam o homem que não mais me quer, como no caso dos filhos desaparecidos, saber que nada se tem mais a esperar não me impede de continuar a esperar. Mesmo diante da certeza da sua morte, a mãe acredita que o filho voltará miraculosamente com fome e frio, portanto, pronto para receber seus carinhos e cuidados. Somos obrigados, para tornar a realidade ao menos suportável, a alimentar dentro da gente algumas pequenas loucuras. O ponto culminante do meu dia não foi aquele em que me arrumei para sair colocando a roupa que melhor me vestiu, mas o que consegui perfeitamente imaginar despindo-me novamente para o Meu Amor.

Elástico é o tempo quando amamos, quando estávamos juntos o estreitávamos e agora, separados, encho e dilato minhas horas com tantas divagações….

Translucidamente Turvo.

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Ontem, depois da sessão com o terapeuta, fui para casa e dormi. Tive um sonho. Sonhei que estava em uma piscina do tamanho do mar e que havia nela três pessoas. Eu, He-Man e mais um que não conseguia ver quem era, mas que ditava as regras do jogo. Eu teria que fugir nadando. Ganharia se não fosse encontrada e perderia se fosse descoberto o local em que eu estava pelo homem que muito parecia fisicamente o super-herói dos anos 80. O tal do He-Man carregava consigo uma espécie de lanterna que servia menos para ver sob a água, que estava bem turva, do que para eu mesma, a que era perseguida, saber se ele estava se aproximando. Foi dada a largada.

Pensei: será impossível ele me encontrar. A cada braçada, eu tenho um leque de 360 graus de opção de caminhos e sempre escolherei um por onde seguir. Na terceira ou na quarta remada que eu der com meus braços, estaremos a uma distância de infinitas escolhas e será infactível meus passos serem seguidos. Não há necessidade de pressa, pois, pelas regras da matemática, jamais serei encontrada. E pensando assim no meu sonho, comecei a nadar. Percorria o que o pulmão me permitia. Parava. Olhava para todos os lados embaixo d´água e via lá de longe mesmo naquela água pouco translúcida sempre uma luzinha vindo em minha direção. Não importava o quanto me deslocava e o sucesso de minha apneia. Sempre era encontrada a despeito do tamanho da piscina, da água turva e do poder do infinito. Desisti. Emergi e gritei: não entendo!

A pessoa que eu não conseguia ver o rosto direito me explicou: você cometeu um erro lógico. A piscina é enorme mas tem fim. As ondas que você faz batem na parede e voltam triplicando a chance que já não era pequena de encontrar você. Agora veja, eu havia cometido um erro lógico e a explicação não fazia o menor sentido para qualquer gigante da matemática.

Se nosso amigo Freud vivo estivesse reforçaria que todos esses símbolos oníricos são particularidades do nosso inconsciente. Acreditando nessa hipótese, fiz de minha própria cama um divã ao despertar desse sonho. O que era o mar? Quem seria o He-Man? Por que daquela luz? Que diabo de erro lógico que cometi? Mais ainda, por que a lógica não explicou um movimento simples da vida? Não vou tentar aqui esclarecer cada um dos símbolos que apareceram, mas gostaria de analisar o sentimento de ter cometido um erro (de lógica) e a explicação dada para o problema – um jogo, no caso – não fazer o menor sentido.

Lembrei-me, então, o quanto saí incomodada da minha última visita ao terapeuta. Percebi que estava havendo um esforço em ser entendida, não por ele, mas por mim mesma. O profissional agia corretamente, fazia perguntas que me ajudavam a pensar, a compreender a minha demanda, a interagir profundamente comigo mesma e, no mergulho a lugares nunca antes visitados dentro de mim, a fazer com que eu enxergasse com mais clareza essa miscelânea de sentimentos tão comuns a todos nós: medo, pena, insegurança, solidão, saudade, dor, alegria, culpa e por aí vai. Comecei a pensar em tudo o que nos fizeram acreditar e na quantidade de fármacos consumidos por todos que conheço, na agenda lotada de qualquer bom ou mau analista, na vida que seguimos como se tivéssemos a deriva sem muito o que fazer por nós mesmos, do medo que temos de gritar o quanto estamos cansados e do quanto não nos ajustamos a nenhum modelo. Estamos ficando doentes porque querem (nossos amigos, nossos pais, o padre, o pastor, o diabo) explicar nossos sentimentos de forma lógica e querem que nos entendamos para nós mesmos. Precisamos, para viver nessa sociedade, que nossas atitudes sejam explicáveis. Que para cada efeito tenha uma causa ou várias, vá lá, mas que ao menos todas elas sejam identificáveis e reconhecidas.

Onde está escrito, além de postagens supérfluas e livros religiosos, que amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural, que amor de verdade é o que dura até a morte, que casamento que dá certo é aquele em que os cônjuges não se separam, que devemos nos sacrificar pelo bem mental de nossos filhos, que o nosso amado está feliz por simplesmente estar ao nosso lado, que só se ama uma pessoa de verdade na vida, que só se pode amar um de cada vez, que no amor há felicidade, que não há amizade entre pessoas que já foram amantes, que ser fiel é contar a verdade, que devemos ser felizes, que quem ama entende o amado e que o amor eterno não acaba e que, se acaba, não era amor? Qual foi o deus que disse isso? Onde está escrito que devemos ser compreendidos?

Se as regras formam uma pátria, o que vemos é um monte de gente querendo e  ao mesmo tempo morrendo de medo de ser exilado. Não sabemos como viver sem as rédeas e sem colocá-las em alguém, agir dentro de uma teoria que já está estabelecida parece mais fácil, mas não há quem, ao colocar a cabeça no travesseiro, diga amém. A vida não cabe em uma teoria e muito menos é feita de várias delas. E o inverbalizável? Cadê o espaço para os impulsos, as emoções, as fantasias, os sonhos? Ora bolas, nem que fossem centenas de normas dariam conta do recado. Impossível enquadrar o grito, o que arde, o que lateja. Já dizia Cazuza, há o certo, o errado e todo o resto. Amar é bom, não amar é ruim. Entre amar e não amar o que temos? Nada? Qual o quê. Uma infinidade de sentimentos isso sim, uma confusão dos diabos, um desassossego dos infernos, saudades gigantescas, necessidades de afeto urgentes, desejos que não se adaptam a essa meia dúzia de regras do bom comportamento que nos impuseram.

Estamos todos vivendo certinho dentro das normas, seguindo corretamente o que nos ensinaram, nossa casa está arrumada, nossos filhos estão jogado alucinadamente videogames mega modernos na sala em total segurança, tudo está em seu devido lugar. Mas então, senhor, por que estamos tomando remédios para dormir?, por que se vende tanto livro de auto-ajuda?, por que ficamos horas embaixo do chuveiro olhando para o zero?, por que queremos sumir do mundo?, por que estamos deixando para trás tantos afetos que poderiam nos bombardear de hormônios?, por que nos sentimos injustiçados pelo destino?, por que temos que viver ponderando tudo e negando as paixões que insistem em nos aparecer, sejam elas por outro homem, outra mulher, por um livro, por um esporte, por uma ideia ou por um ideal?

O problema é que todo o resto não entra no regulamento que devemos seguir e é o que, sinto lhe dizer, nos faz sentir vivos: nossa ausência total de certezas, nossa pureza que cismam em não acreditar nela só porque crescemos, nossa vontade de ir ali comprar um cigarro, nossa sinceridade ao dizer que não fizemos por mal, nossa vontade de fazer o mal, nossa obsessão em querer o bem, nosso desejo de ir embora, nossa ânsia em voltar, nosso asco em viver em paz, nossa angústia de não conseguirmos ser felizes porque sabemos, lá no fundo que, viver em paz é a morte em vida. Nossa. É tudo tão complicado…

Mesmo sem nada entender, recusei-me a ficar refém de tudo o que construí. Separei-me de quem namorei desde meus quatorze anos. O difícil dessa separação, perceba, será viver com ele (e não sem ele) em minha vida. Nem que ele tivesse morrido poderia a presença de tão boa companhia deixar de ser sentida por onde quer que eu me esconda. Não é necessário que Chico me responda pra onde vai o meu amor quando o amor acaba porque nada aqui dentro acabou. Transformou-se bastante, é verdade. E o suficiente para que eu aceitasse as minhas dúvidas impublicáveis que foram incompatíveis com as certezas de quem dormia cantando ao meu lado. Permiti-me o tormento de não ser única. Admiti que há um deus um diabo e o todo o resto morando em meu corpo.

Encafifa-me agora, ou melhor, está muito difícil de eu aceitar a incompressibilidade de que é concebível, mesmo diante desse mar de possibilidades que se agiganta na minha frente e que nele sigo remando com meu próprio corpo, alguém me encontrar com facilidade.

Prossigo eu apavorada tal como estivesse mergulhado em uma piscina gigante repleta de água turva com toda essa estranha gente que me habita. Sem nada entender. Sem nada enxergar. Mas meu deus. Como esse fluido que me circunda me mantém aquecida e me convida –  pela sensação que experimento em minha minha pele – que eu vagueie dentro ele.

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A obra que ilustra esse texto é do artista Sérgio Ricciuto.