Je ne sais pas qui je suis

macaco

O ataque à revista francesa suscitou debates de vários níveis e o termo “liberdade de expressão” apareceu em quase todos eles. Uns contra outros a favor. Todas as posições foram bem defendidas a ponto de eu me pegar sem ter opinião sobre o assunto. Claro que ninguém aqui concorda com o ataque terrorista em si. Há quem diga que o objetivo real do ataque não era enfrentar o (polêmico) humor, o objetivo real foi político. Dito de outra forma, o objetivo não era atacar a liberdade expressão. Mas pouco me importa isso por ora. Não quero discutir isso neste momento. Vamos nos ater sobre o direito de falar e fazer piada sobre o que nos der na telha.

Para começar, gostaria de lembrar de um episódio ocorrido no ano passado onde Levy Fidelix, candidato à presidência, proferiu frases pelas quais foi acusado de estimular a homofobia em um debate dos presidenciáveis. A lembrar duas delas: “dois iguais não fazem filho” e “aparelho excretor não reproduz”. A mesma coisa que vemos depois do ataque à Charlie Hebdo aconteceu nas redes. De um lado, havia os que defendiam a tal liberdade de expressão; de outro, os que queriam dar a ela um limite. Reinaldo Azevedo, colunista famoso da revista Veja, partiu prontamente em defesa à liberdade em tela dizendo a la Voltaire (ou algo que o valha) que não concordava com o que Levy Fidelix proferia, mas defendia até a morte o direito de ele ter falado tudo o que ouvimos boquiabertos afirmando categoricamente que não havia crime algum porque todos temos o direito de ter alguma opinião seja lá sobre o que for.

De fato,  o direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição. Isso, porém, não legitimiza ninguém a incitar à violência porque isso pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas. E há também o direito de qualquer cidadão de preservar a sua integridade física, psicológica e de ser livre para fazer a opção sexual que melhor lhe agradar. Sendo assim, muitos dos que se posicionaram contra Fidelix o fizeram porque a sua fala alimentava a intolerância, o ódio, a discriminação. E chegamos ao ponto: o exercício da liberdade de expressão pressupõe responsabilidade. Não há crime em declarar o que pensa, mas a forma como se faz isso faz total diferença. A questão que me coloco diante o que ocorreu em Paris é: quem vai definir a forma correta? De qualquer maneira, Reinaldo Azevedo ter vindo à público defender o direito de se expressar da forma fidelixana ao invés de ter ajudado nosso país, na ocasião, a buscar uma convivência mais harmoniosa, mostrou bem qual é o conceito de civilidade por ele entendido. Ele conclamou as pessoas para desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes. Isso, para mim, ficou claro.

E o que era, de fato, o que os cartunistas da revista Charlie Hebdo faziam? Depende para quem se pergunta, é claro. Quem foi a vítima, afinal? O assunto fica delicado porque parece que estamos defendendo a carnificina. Por outro lado, há de se esclarecer mais uma questão em voga: se estamos dando uma atenção maior a esse caso do que aos nigerianos mortos quase que ao mesmo tempo em outras circunstâncias – que nada se assimilam ao que vimos na França, principalmente, em números – é porque está em jogo a nossa forma de nos portarmos nesse mundo. Podemos ou não dizer o que pensamos?

Inicialmente, é claro, veio o choque quando soubemos do ataque. Depois as charges começaram a aparecer e não que justificassem, mas percebemos que onde era visto uma ação, na verdade, era uma reação. Logo depois, jornalistas e humoristas começaram a virar Charlie, nenhuma novidade. Inicialmente eu fui também, mas quando vi Danilo Gentili sendo Charlie, percebi que deveria refletir mais sobre o assunto. Logo ele, o típico babaca que faz piadinhas sobre  racismo, machismo e homofobia e que gera o riso bobo de sua platéia que ao rir também endossa o racismo, machismo e homofobia fazendo do riso um lugar seguro pra que os estereótipos racistas, machistas e homofóbicos cresçam, legitimando a ignorância e raiva disfarçados de senso de humor, enfim, logo ele que sempre diz “é só uma piada” depois de ter disseminado mais preconceito e ódio no mundo vem defender uma coisa bonita como a liberdade?

Mas daí, nessa esteira, lembrei-me do quanto ri com Monty Python e a “ A vida de Brian” que mexeu com judaísmo, com religião e mais um monte de coisas e comecei e pensar sobre a beleza da liberdade. O filme é violentíssimo também, vamos combinar. Violento porque sabemos que o homem não é só a matéria corpórea que veste. É o infinito de suas ideias. O mesmo digo sobre “Porta dos Fundos” que despertou a fúria dos católicos e gargalhadas de muita gente. E aí? E agora, Josué? Onde fica o limite entre o que é engraçado e o que é ofensivo? O que é exercício do humor e o que é preconceito? As charges contra a Dilma, presidente que ajudei a eleger, não arrancam risos meus. É lícito proibi-las? Um humor que desse vazão às ideias de Bolsonaro por exemplo, seria defensável por mim? Existe charges que geram um riso universal? Laerte fez uma historieta com Alzheimer kid, um sujeito saindo correndo na cidade avisando que kid veio pra matar. Ele veio pra matar mas não lembrava quem. Eu ri a beça, mas quem tem na família pessoas com Alzheimer, achou graça?

Às vezes eu sou Charlie ainda que ache tudo muito ofensivo quando me coloco no lugar dos muçulmanos. Isso ocorre geralmente quando me lembro do quanto Monty Python me fez pensar com as piadas que ofendiam diretamente, na época, a minha religião. Monty Python foi fundamental para eu ter virado ateia. Era humor inteligente mas muito ofensivo. Daí me pego pensando qual a diferença entre os desenhos de Charlie Hebdo e as falas de Levy Fidelix?, e fico perdida sem resposta. E, tenho que confessar, às vezes não sou Charlie quando vejo as charges que atacam o atual governo em tom de zombaria e sem fundamentos rotulando a todos que dele participam e começo a achá-las um desserviço para a humanidade já que percebo a intolerância e a discriminação.

Enfim, o texto é inconclusivo. Tenho lido muito e procurado entender e conectar as informações. Tudo está sendo aterrorizante o suficiente para abalar as minhas convicções. Agora quais convicções, já nem sei mais. De princípio, tenho visto que nas exibições de força no feicebuque, as pessoas se apegam muito às posições delas e fazem trincheiras de onde atiram. Eu não consegui um lugar exato para fazer a minha barreira. A minha barricada vai para lá e vem para cá conforme eu rio ou me ofendo.

A verdade é que Je ne sais pas qui je suis. Talvez, exatamente agora, je suis uma mistura de Marcie e Patty Pimentinha.

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Fontes:

A diferença entre o politicamente incorreto do Charlie Hebdo e o politicamente incorreto de Gentili e derivados

http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-01-08/nao-trabalharia-na-charlie-nao-tenho-porque-fazer-desenhos-de-maome-sem-roupa.html

http://descolonizacoes.blogspot.com.br/2015/01/por-que-nao-sou-charlie-hebdo.html

http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/166167/Leonardo-Boff-‘eu-tamb%C3%A9m-n%C3%A3o-sou-Charlie’.htm

O Charlie Hebdo era racista?

http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/166161/Porque-eu-n%C3%A3o-sou-Charlie.htm

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/charlie-hebdo-reabre-o-debate-sobre-os-limites-da-liberdade-de-expressao.html

http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/o-atentado-contra-o-charlie-hebdo-e-a-regulacao-da-midia-na-franca-e-no-brasil-3015.html

http://www.contextolivre.com.br/2015/01/a-diferenca-entre-o-politicamente.html

Eu sou Charlie, mas não muito

https://atomic-temporary-52399608.wpcomstaging.com/2014/09/30/carta-aberta-a-reinaldo-azevedo/

https://atomic-temporary-52399608.wpcomstaging.com/politica/

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