Sobre submarinos e Titanics

A morte de cinco tripulantes da expedição turística para visitar os destroços do Titanic foi manchete dos jornais no mundo. Houve memes, piadas e muita perplexidade por ter sido uma escolha passar por essa experiência que seria desconfortável e com alto grau de periculosidade.

Amante da Ciência que sou, desacredito em “escolhas”. Vou fundamentar meu argumento para refletir sobre a repercussão de tudo isso e do quão incompreensível essa dita escolha desses cinco homens bilionários foi para nós.

Você já deve ter ouvido por aí que vivemos de acordo com as nossas escolhas ou que somos resultado daquilo que escolhemos. Há várias frases como essas compartilhadas ou ditas diariamente por alguém. A despeito de isso parecer algo óbvio e até sábio, esse papo motivacional utilizado por muitos “coaches”, a meu ver, pode ser uma grande ilusão. Há grandes possibilidades de que as “nossas escolhas” não sejam exatamente nossas, mesmo quando temos total certeza de que as tenhamos tomado de forma consciente.

Nós, como seres humanos, gostamos muito dessa “ideia de liberdade”. Mas será que nós somos completamente autônomos como pensamos ser? No cotidiano, temos a faculdade de realizar ações que, em tese, poderíamos não realizar caso (não) quiséssemos. 

O que aponto aqui é que esta noção é muito mais complexa quanto parece e que pode ser tão real quanto uma miragem no deserto. 

Será que temos realmente a faculdade plena de escolher entre esse ou aquele caminho? Estamos inteiramente livres para escolher entre fazer ou não fazer certas coisas? 

Ouvir que somos livres para escolher isso ou aquilo sempre me incomodou profundamente porque jamais me senti livre e escolhendo nada. Nem profissão, nem marido, nem ter ou não filhos, nem o tema da minha tese, nem a separação, nem um novo amor, nem o que sinto… Nada disso foi uma alternativa. Como não?, diria você. Vem comigo que no caminho eu te explico.

Para começar, se acreditamos na ciência, que o universo é previsível e segue um conjunto determinado de regras, ou seja, que cada coisa no universo que temos observado até agora segue algumas diretrizes específicas e nada está isento da influência de forças externas, então, por que nós – os produtos do universo – estaríamos isentos de influências do ambiente? Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito?

Agora vamos mais fundo – assim como um submarino projetado para viajar com segurança.

Falar de “ciência” sem sequer aprofundarmos seus fundamentos já levanta muitas dúvidas: será que a razão pela qual a intuição nos diz que temos um livre-arbítrio não seria porque a nossa mente altamente limitada não consegue identificar todos os fatores que afetam a nossa “escolha”?

Diria você: mas eu me vejo escolhendo, por exemplo, em tomar café com açúcar ou com adoçante. 

Será? 

Vejamos: seja lá qual for a sua “escolha”, considere que ela possa ter acontecido porque a mídia tem mostrado demasiadamente o mal que um ou outro produto faz, que seu paladar não aceita ou um ou outro, que o seu médico aconselhou a diminuir o consumo de um dos dois e por aí vai. Até a mais simples das escolhas conta com fatores que não podemos saber ao certo quais são.

Se acreditamos que há um inconsciente como apontam pessoas que lidam, por exemplo, com a psicologia,  veremos que não agimos de forma livre, mas sim conforme nossos impulsos e desejos inconscientes – como se fossemos reféns de nós mesmos.  

Desta forma, acreditamos estar agindo a todo instante conforme queremos e escolhemos sem notar que, na verdade, estamos satisfazendo desejos que se encontram em nosso inconsciente. 

Vejamos como isso faz sentido: o que nos leva a consumir certos produtos, a trabalhar em certas atividades e a nos relacionar com determinadas pessoas? O quanto condicionamos nossos atos aos resultados que estes trarão? O quanto estes resultados que almejamos são construídos pelo meio social em que vivemos? 

Dito de uma outra forma: se um objeto lançado por nós tivesse consciência do seu movimento não poderia ele se julgar livre para perseverar nesse movimento na medida em que ignorasse por completo o impulso que demos a ele? Em que medida aquele que crê ser livre não é tal e qual uma pedra lançada ao vento que ignora a força que a impeliu?

Se acompanharmos os estudos feitos pela neurociência, veremos que atribuir à mente humana alguma liberdade de decisão não condicionada por processos inconscientes parece cada vez mais difícil. Para muitos neurocientistas, o nosso cérebro é um órgão do corpo, como tantos outros, igualmente formado por tecidos e células especializadas, que funcionam conforme nossa constituição bioquímica, reagindo a estímulos internos e externos de formas complexas, porém, de certa maneira, previsíveis. A mente é um troço que emerge da atividade do cérebro em conformidade com as leis da física e da química, o que implica em dizer que somos, em certa medida, o que a química de nossos cérebros faz de nós. Cada emoção pode ser associada a processos neurológicos que, por sua vez, podem ser reduzidos a processos bioquímicos que, em última instância, nós não temos controle.

Particularmente, não acho que a mente possa se reduzir aos processos que ocorrem no cérebro. Para mim, a equação seria “cérebro + alguma coisa = mente”, sendo que essa “alguma coisa” pode ser entendido como algo metafísico que traria imprevisibilidade para as decisões do indivíduo – quebrando, desta forma, o determinismo do mundo físico. 

Ainda assim, isso não implica a existência do livre arbítrio. 

Sentir nojo de insetos não me parece uma escolha. Sentir-me mal em um determinado ambiente não me parece uma escolha. Sentir-me atraída por alguém não me parece uma escolha. Sentir saudade não me parece uma escolha. Sentir-me sozinha não me parece uma escolha. Sentir-me triste não me parece uma escolha. Sentir seja lá o que for não me parece uma escolha.

Afinal, “o que, então, determina a minha vontade?”, perguntaria você. Não sei se há uma resposta para isso, mas se você acha que é você mesmo ou nada, perceba o quanto isso é incoerente: se é você que determina a vontade, isso significa pressupor um “você” de certa natureza que determina necessariamente a vontade. Dizer que “você” determinou sua vontade só faz algum sentido na defesa do livre arbítrio se “você” não é determinado por nada. Porém, o que seria algo que não é determinado por nada? 

Complicado quando pensamos seriamente a respeito, não?

Antes de eu continuar, saiba que a filosofia que fez isso com a minha mente e como disse o grande mestre: uma mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao tamanho normal.

Ando assim: reflexiva quando vejo um submarino com cinco homens implodir e muita gente rir por eles terem desprezado o risco. Sem fazer juízo de valor nenhum sobre piadas que, confesso, ri de algumas como “no fundo, todos os bilionários são legais”, o que proponho aqui é pensar sobre a nossa essência.

Pergunto-lhe: uma célula individual tem o livre-arbítrio? E uma bactéria, teria? Ou uma flor? E uma girafa, um cachorro ou um leão, por exemplo – será que eles têm livre-arbítrio? Quando as tartaruguinhas saem dos ovos e correm para o mar, elas teriam como opção ficar na areia?

Em que ponto da nossa história essa tão contraditória e ilusória ideia de liberdade para escolher apareceu em nós?

Uma coisa é fato: essa ideia de escolha e livre arbítrio é o fundamento da punição dos pecadores para algumas religiões. 

Que sentido teria mandar para o inferno pessoas cujos pecados não tivessem sido cometidos por vontade própria? Ou pior, sem agentes de vontade livre, a culpa pelo mal no mundo recairia sobre o único ser livre que sobraria: Deus. O fato de a ideia da escolha vir associada a outra de julgamento não é por acaso: a última precisa da existência da primeira. Isso é algo simples de compreender, afinal, quais seriam as consequências para a sociedade, então, se descobríssemos que não existe livre arbítrio? Como a doutrina da condenação e salvação se sustentaria?

Grande parte da infelicidade, da culpa, do arrependimento e da angústia que sentimos é porque nos fazem acreditar que somos livres e que devemos pagar pelas más escolhas. No caso das religiões abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo), o impacto da ideia de que não somos livres para escolher seria fatal para essas doutrinas.

Muito complicado, eu sei, acreditar que não escolhemos nada e que não somos culpados por nada. Como lidaremos com a responsabilidade e autonomia pessoal na Moral e no Direito? Como algumas religiões se legitimariam? Como educar nossos filhos sobre o certo e o errado?

Lá pelos idos de 2008, em um estudo publicado na Nature com o título Determinantes Inconscientes de Decisões Livres no Cérebro Humano, ficou provado cientificamente que a decisão começa a ser formada no cérebro até 10 segundos antes dele tomar consciência disso. Ou seja, você se prepara inconscientemente para fazer algo bem antes de sequer se dar conta que está fazendo isso – e bem antes de realizar o movimento de fato. 

Outros estudos, dessa vez focados na atividade de cada neurônio em vez do cérebro como um todo, mostraram que as células neurais ficavam ativas antes da decisão de apertar um botão, por exemplo.

Vocês podem argumentar que o livre arbítrio é muito mais profundo do que os resultados que essas pesquisas nos induzem a pensar. Em vez de mexer dedos e apertar botões, seria necessária a análise de atividades mais complexas. Ainda assim, mesmo essas tarefas mais abstratas e intelectuais do que propriamente um movimento muscular não são totalmente espontâneas – elas dependem de coisas como carga genética, experiência, traumas de infância etc.

Talvez você acredite tanto nessa ideia de livre-arbítrio e da existência da escolha porque ignora as causas do seu querer. E veja que interessante e paradoxal: quanto mais imaginamos um livre-arbítrio, mais precisamos de regras que limitem, justifiquem e expliquem a liberdade.

Somos o que somos porque temos uma essência que não controlamos. Talvez, se houver liberdade de fato, esta deva ser compreendida como a proximidade máxima do conhecimento dessa nossa essência (que é ímpar para cada ser) do que nos torna tristes ou mais felizes. 

Quem acredita que exista liberdade de escolha fica por muito tempo pensando que tudo poderia ter sido diferente e se culpando por caminhos (que não existem de fato) que poderiam ter tomado. O livre-arbítrio e a culpa não sobrevivem isoladamente.

Mas, então, perguntaria você: “se eu não posso escolher, como posso ser julgado?”.

A ideia de ‘escolha’ leva diretamente a outras como de julgamento e moral que, por sua vez, não são objetivas e nem universais. Vide as leis diferentes para cada país.

Mas, continuaria você: “matar, por exemplo, seria justificável?”.

Se a escolha for uma ilusão como parece ser quando pensamos sobre ela, quem mata, nessa esteira, não teve outra alternativa. Isso, porém,  não quer dizer que um assassino não deva ser condenado, preso e reabilitado. 

Se pensarmos no ser em si, no que nos movimenta, no que nos engrandece e nos diminui e dispensar (por um segundo que seja) um critério exterior e moral para nos julgar, nossa cabeça dá uma bugada, como dizem por aí.

Nossa moral nos sustenta, mas limita nosso raciocínio.

Quando desconsideramos – para efeito de reflexão – uma ordem moral do mundo, abrimos as portas para os devires: permitimo-nos tornar o que somos e a aceitar o outro como ele é. Sem julgamentos, mas com atitudes necessárias para um bom funcionamento da sociedade e segurança de todas as pessoas que a constituem.

É um exercício difícil, mas interessante quando conseguimos ou tentamos fazer.

O fato de que a liberdade da vontade não possa ser coerentemente pensada através de conceitos (uma vez que, em última instância sempre caímos ou no determinismo ou no acaso) não significa que sua possibilidade esteja negada. E é isso que acontece. É dado como certo no mundo que somos livres para escolher. Ou seja, acreditamos piamente que escolhemos os caminhos que percorremos.

Porém, observem: a própria metáfora da bifurcação e de caminhos escolhidos é uma invenção que nos gera culpa e medo. Não há caminhos físicos e reais em um mundo complexo e abstrato.

Se agimos mal em uma situação é pelo fato de ter feito uma coisa de uma determinada maneira e ter tido um resultado ruim para nós ou para alguém.  Neste caso, é bom tentarmos mudar, digamos, a química do nosso corpo ou o meu modo de pensarmos para que sejamos capazes de agir de uma forma diferente quando submetidos a uma situação similar. Não se muda o depois se o antes for sempre o mesmo.

Quando falamos em reabilitação de pessoas que estão encarceradas por ter cometido algum crime, estamos falando disso. Se uma pessoa foi capaz de matar um outro ser humano e foi privada de sua liberdade, ela será solta depois de alguns anos e voltará para a sociedade. Se não alterarmos os valores, a forma de ver a vida e o outro, podemos ter reincidência no crime. 

Ou seja, as consequências de acreditar que não temos escolhas, de reconhecer que uma mente consciente nem sempre vai originar  pensamentos, intenções e ações não muda o fato de que pensamentos, intenções e ações de todos os tipos existem.

Voltando para os riscos que algumas pessoas passam por “achar divertido” – como alguém que anda, por exemplo, em uma corda bamba sem equipamento de proteção para passar de um prédio para outro, … enfim, sobre pessoas que se arriscam, pesquisadores dos Estados Unidos em um estudo divulgado na revista Nature Communications mostraram que a capacidade de correr mais riscos está ligada a uma região específica do cérebro, o córtex parietal superior direito. Com isso, fica explicado por que, em algumas fases da vida ou determinadas pessoas arriscam muito mais do que outras.

Jovens têm, no geral, um volume de matéria cinzenta do córtex parietal posterior direito maior do que as pessoas idosas e isso pode ser uma explicação porque um parque de diversões, por exemplo, não é visto como diversão para pessoas mais velhas (de uma forma geral).

Há vários tipos de riscos para além de uma viagem para ver os destroços do Titanic em um submarino reprovado por engenheiros. Aplicações financeiras, saltar de paraquedas, andar de bicicleta, caminhar no meio do mato, divorciar-se, fazer uma viagem para um lugar inóspito, mergulhar com tubarões, subir o Everest… falando nele, lembrei-me que o montanhista inglês George Mallory, cansado de responder à mesma pergunta feita por milhões de vezes em sua busca por patrocínio “por que você quer escalar o Everest?”,  ele passou a responder “porque está lá”.

Quem se dispõe a subir uma montanha, fazer uma viagem apertada em um submarino, cruzar oceanos em um veleiro ou num barco a remo, meditar no Tibet, enfim, há muita gente que se dispõe a abrir mão dos confortos da vida e da convivência com familiares e amigos, em troca de privações, sofrimentos físicos e exposição a riscos supostamente desnecessários. Nós, mortais com pouca coragem ou com pouca massa cinzenta do córtex parietal direito, ficamos olhando tudo isso e nos perguntando: Para que isso, gente? Custa ficar em casa vendo um filme?

E uma resposta lacônica e sincera de quem foi será: porque estava lá. 

Vivenciamos o paradoxo, o absurdo, ou seja, aquilo que não é compreendido por outras pessoas devido à singularidade da experiência e o quão distante é, para nós, a possibilidade de fazer algo similar. Por outro lado, nós mesmos fazemos coisas que se confrontados sobre a finalidade daquilo, não sabemos responder. O Titanic de cada pessoa está em algum lugar.

Quando algo dá muito errado com quem se arrisca, quem passa a se conhecer melhor somos nós que sobrevivemos ao nos permitirmos conversar sobre tudo isso. 

E quando algo dá muito certo, também. Por exemplo, se um amigo faz uma aplicação de grande risco e consegue um lucro exorbitante, isso não vai passar indiferente para você. 

Qualquer experiência dessa natureza com outras pessoas, trazemos, naturalmente, para nosso umbigo. 

Seres humanos que correm risco fazem isso por ego, para se destacar no meio de uma multidão ou em busca de autoconhecimento. 

E todos nós, em alguma medida, temos o nosso Everest ou um Titanic. Comemos, por exemplo, açúcar estando na iminência de uma diabetes porque o açúcar simplesmente “está lá”. Fumamos porque o cigarro existe. Andamos de tirolesa porque ela foi montada. Há quem já tenha morrido estudando de perto os vulcões porque eles estavam lá. Mudamos de profissão já adultos e com a vida estabilizada porque está tudo por aí. 

Termino citando Riobaldo, personagem do “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Ele falou em diversos momentos ao longo do livro que “viver é muito perigoso”. Ou seja, Riobaldo observa de várias maneiras diferentes que o perigo de viver consiste no próprio fato de existir.

“Viver é muito perigoso. Porque aprender a viver é que é o viver, mesmo. Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.”

Escrever é o meu risco.