A Menina que Roubava Flores

flores

Vou contar para vocês uma história. Se é real ou não deixo para que o leitor avalie. A mim, cabe somente narrar tudo o que eu vi.

Priscila é uma moça adulta, bem jovem e que mora sozinha na rua Sorocaba entre o Humaitá e Botafogo. Esta rua sai bem em frente ao cemitério São João Batista. Priscila é tal como a Januária do Chico Buarque, moça dada às janelas mas não tão percebida e nada que chegue perto de causar algum fenômeno natural tipo o mar fazer maré cheia para ficar mais perto dela. Longe disso. Priscila é moça sozinha e não vista pelo Sol quando desponta. Seu apartamento recebe pouquíssima luz natural.

Cheia de vida, Priscila se distrai bem com as mortes. Já acompanhou com o olhar inúmeros enterros. Se o falecido for gente importante, Priscila até é capaz de descer para ver de perto os amigos artistas chorando. Observa com atenção as homenagens e acha tudo muito bonito, mas nada que chegue perto da beleza das coroas e das flores. Ah como Priscila ama essas corolas das plantas, odoríferas e de cores vivas

Desde criança, Priscila tem paixão em ter em casa flores naturais como enfeite. Sabe que depois de livro lido, não há melhor ornamento para um lar. Flor que acaba de ser aberta traz energia boa para o ambiente, sempre repetiu Priscila. Pela proximidade do cemitério, Priscila já há algum tempo não gasta dinheiro com esses vegetais. Uma vez por semana, antes de entrar em casa, passeia por entre os túmulos e sempre há flores naturais deixada em uma sepultura por alguém saudoso. Como Priscila é cética, não acredita em religião nenhuma, búzios, cartomantes, reencarnação, previsão do tempo nem em astrologia ou forças do além e sabendo que defunto não sente nada, Priscila não titubeia em pegar um vaso ou um buquê que lhe agrade. Sem pedir licença nem nada, Priscila subtrai as cores do jazigo.

 A casa de Priscila está sempre, ao seu modo, com boas energias.

 Aconteceu, porém, algo estranho há dois anos atrás. Diria, surreal. O celular de Priscila tocou. Não apareceu número algum na tela do aparelho, a mensagem era ‘desconhecido’. Priscila atendeu e ouviu uma voz:

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – Um clamor choroso implorava do outro lado da linha.

Priscila, óbvio, achou que estava sendo observada ou que alguém pelas redondezas estava passando um trote. Mas quem poderia ser? Ela sequer cumprimentava seus vizinhos direito… Seria algum funcionário do próprio cemitério? Deixa estar, pensou a moça acreditando que aquilo seria passageiro. Qual o quê, minha gente.

 A Voz, digamos assim, ligava sempre. Todo dia para ser mais precisa. E mais do que a paz, aquilo estava atrapalhando as leituras de Priscila que, vale observar, fazia doutorado em filosofia na UERJ e estava se especializando em Heidegger.

A primeira solução dada foi a mais simples possível. Priscila comprou um chip novo para o celular, mudou de número e continuou florindo a sua casa com rosas, margaridas, lírios que estavam destinados a morrer debaixo do Sol quente beirando o insuportável que aquece as tumbas do São João Batista e todo o resto do Rio de Janeiro.

 Em menos de doze horas com o novo chip, Priscila recebeu de novo uma ligação de um desconhecido. Não pode ser!, pensou ela, eu não dei esse número ainda para ninguém!

 – Alô. – Sinalizou a moça que havia atendido.

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – A Voz insistia.

 – Quem é você? Por que não me deixa estudar em paz? – Desesperava-se Priscila.

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – A voz se repetia.

Por mais que Priscila insistisse, a voz parecia ser surda e não parava de reclamar as suas flores subtraídas.

Priscila tentou, então, desligar o celular. Porém, mal o ligava e a Voz já a chamava. Se não atendesse, a Voz insistia. Bem da verdade, bastava, ao que parecia, falar com a Priscila uma vez por dia.

Ninguém é ateu quando passa por uma forte turbulência no avião. No caso de Priscila, não era um aeroplano em vôo, seu próprio chão estava tremendo tal como o solo de Nepal no terremoto em 2015. Priscila resolveu pedir ajuda para uma mãe de santo. Nem sabia direito o que era isso. Por que pedir socorro a uma mãe ou um pai de santo e não ao próprio santo diretamente? Não importa, a macumba pareceu-lhe mais apropriada para o caso.

 – A senhora vai ter que acender duas velas de cores diferentes e rezar pelo espírito da Voz. – Disse a velha vestida toda de branco.

Priscila deixou de lado todas as suas certezas em relação ao espiritismo e tratou de fazer exatamente o que a macumbeira lhe aconselhou.

De nada adiantou… Acendeu, então, quatro velas, rezou muito mais do que foi a ela recomendado. Nenhum efeito…

Priscila resolveu, então, tentar um padre. Só que os padres, de uma forma geral, são ateus em relação aos deuses de outras religiões. Padre Zezinho, por exemplo, não acredita em espírito que fala – muito menos pelo celular. Por que não fala diretamente? Desde quando espírito precisa de aparelhos eletrônicos para se comunicar?, questionou o sacerdote para Priscila que já não mais raciocinava. A guria lembrou ao padre Zezinho do fenômeno Poltergeist e ele, sabiamente, orientou Priscila a procurar um psiquiatra dizendo que ela estava tendo alucinações.

 – Por que você quer ter a casa sempre florida? – Perguntou a doutor Mauro.

Priscila percebeu que aquilo também não resolveria seus problemas. O médico estava achando que era ela louca. Terminou a primeira consulta com uma receita tarja preta que foi jogada no lixo antes mesmo de sair do prédio que abrigava o consultório. Já dizia o filósofo alemão, aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Priscila sabia que não estava louca. Ela estava bem atenta a tudo o que estava acontecendo e ouvindo de verdade.

Diria você, não era mais fácil devolver logo o diabo das flores para o finado? Dois problemas Priscila enfrentava. O primeiro: já viram o tamanho do cemitério São João Batista? E quem disse que Priscila se lembrava de qual sepulcro  havia furtado? Vale observar que até então Priscila jamais havia considerado que cometera algum crime. Afinal, tirar algo de gente morta já enterrada não podia ser considerado errado já que é pela carne oxigenada que percebemos o mundo, pensava assim Priscila. Parecia-lhe, porém, diante tudo isso, que ela havia se enganado. Gente morta também sofre e continua apegada a coisas materiais. O outro era: como ela devolveria as flores furtadas se já havia jogado no lixo depois que murcharam? O falecido aceitaria flores compradas por ela? E não adiantava perguntar isso para a Voz pois ela só sabia repetir:

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei…

Poderia passar alguns dias, quiçá o resto da vida, sem celular. Porém, a Voz poderia muito bem, dado tudo o que Priscila observou, vir pelo rádio, pela televisão ou pelo microondas, por exemplo. O problema parecia-lhe demasiado profundo para que pudesse ser resolvido por considerações tão superficiais, a dizer, mundanas. Podemos ser punidos pelas nossas virtudes?, lamentava-se Priscila que resolveu, então, evitar o martírio, o sofrimento “pela verdade” e até mesmo a defesa de si. Todos aqueles caminhos já tomados estavam corrompendo a inocência e a sutil neutralidade da sua consciência. Tomou coragem e rebatizou o seu lado mau do seu melhor lado. Enquanto houver esperança não haverá solução, pensou Priscila.

A casa da moça continuava a ser lindamente florida pelo mesmo mecanismo barato que descobrira. O celular de Priscila continuava tocando todos os dias e ela sempre atendia. Ainda que a Voz parecesse não ouvir o que Priscila dizia, ela começou a usar aqueles telefonemas anônimos para (se) afirmar: O que eu faço com as flores? Faço isso: elas serem minhas e bem cuidadas. Essa glória ninguém vai me tirar, está me ouvindo?

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei…

Não vou me arrepender do que fiz: ladrão de flores tem não cem anos de perdão, mas uma eternidade, compreende? O que você faria por elas se nem ao menos nariz não tem mais?

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores…

Flores em túmulos são mesmos para serem furtadas, não podem secar ao Sol, morrerem virgens enfeitando a morte, o que não se embeleza por definição. Não cumpririam o seu destino de flor. E eu tenho afeto a elas, sim? Não confunda afeto com beijos a abraços, por favor. Afeto, do latim “affetare”, quer dizer “ir atrás”. É o movimento da alma na busca do objeto de sua necessidade. É o Eros platônico, a urgência do alimento que faz a alma voar em busca do pão sonhado. Eu escolho as flores que pego com o mesmo cuidado de uma mulher que faz quimioterapia escolhe a melhor forma  de disfarçar a falta de cabelos em sua cabeça.

– Devolva as minhas flores, por favor…

Quer maior erro em deixar secar um botão de rosas? Preste atenção e é um favor: estou convidando você a mudar-se para um reino novo. Rosa é flor feminina que se abre toda e tanto que para ela só resta alegria de se ter sido aberta. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. Quem vai cheirar uma rosa em um cemitério? E quando há rosas brancas e amarelas? Como resistir tamanha exuberância e deixar que não sejam belas para ninguém? As violetas são bem mais introvertidas e de uma introspecção profunda. Dizem que se esconde por vergonha ou modéstia. Nada disso, as violetas só querem poder captar os seus próprios segredos. E cabe a nós encontrar esse perfume abafado em suas pétalas para ajudá-las. Violetas dizem cheiros que não se podem escutar levianamente. Há de se ter muito carinho com elas.

– Devolva…

Adoro a tagarelice das margaridas e a artificialidade e a antipatia das orquídeas… tenho vontade de por reticências em tudo que é frase com flor…

– …

A Voz calou-se para sempre.

Priscila agora tem que lidar com um outro fenômeno estranho. Suas flores têm durado muito mais do que o normal quase a ponto de parecerem artificiais. Beleza permanente enjoa e a casa fica com cara de monotonia. Para não jogá-las fora ainda assanhadas de tanto perfume e arreganhamentos, Priscila tem as levado de volta ao cemitério e feito todo mês um tipo precioso de escambo com os mortos.

Peixe Fora d´Água

pilates

Desde que me entendo por gente, odeio fazer exercício físico. Não levo jeito para esporte nenhum. Tenho medo de bola, não vejo graça em peteca, água com cloro deixa meu cabelo duro e me dá otite, não tenho equilíbrio para surfar e, se pudesse, passaria o dia na rede lendo.

O ponto é que enquanto somos jovens, e isso vai até os vinte e cinco anos, não precisamos de fato fortalecer músculo nenhum. Está tudo lá, indiferente à gravidade e ao tempo. Mas depois desse marco… Esse é o problema, gente, começamos a envelhecer muito cedo. Homens ficam carecas (nada contra os carecas) e já bagulham o corpo com barriga de cachaça antes dos trinta. Mulheres já estão cheias de pés de galinha e fios de cabelos brancos antes de terminarem a faculdade. A gente dá um tchau e tudo balança como um pudim andando em uma carroça.Tenso. Giga tenso.

Há alguns anos atrás, percebi que, ao entrar na água do mar, caía a cada baque das ondas nas minhas pernas. Ou eu bem me concentrava como se estivesse em um jogo de xadrez ou ficava tomando caixotes com a água nos joelhos. Era a porcaria da idade que já havia chegado sem eu sequer ainda ter netos. Eu pensava que esse tipo de coisa fosse acontecer só quanto eu tivesse com oitenta anos. Qual o quê…

Não havia outro jeito. Eu tinha que entrar para uma academia e fazer algo pelo meu corpo. Matriculei-me aqui por perto e fui. Ao chegar, um susto. Eu não estava vestida de forma apropriada. Fui de bermuda jeans, sandália e camiseta. Para mim, estava ótima, bem confortável e bababá bububú, mas geral desaprovou. Precisava me vestir com roupas adequadas que facilitassem os meus movimentos. Era só o que me faltava… Comprei a tal roupa-adequada e quem disse que tinha coragem de sair pelas ruas andando embalada à vácuo? Ainda que eu colocasse uma blusa toda solta que cobrisse tudo – ou o pouco que tenho – tinha meião e tênis! Fala sério! Sem contar o adereço de quem vai suar rios: a garrafinha d´água que você aperta e jorra o líquido com a boca aberta. A água vem pelo ar impulsionada pela pressão que seus dedos fazem com a garrafa de cabeça para baixo. Ainda por cima tinha que aprender me hidratar daquela forma estapafúrdia.

Vocês que me perdoem, mas a fauna de uma academia é hiper estranha. O que são aqueles coxinhas, gente? Não me refiro a galera que pensa politicamente diferente de mim não, refiro-me ao formato do corpo dos meninos. Eu via homens-coxinhas por todos os lados. Troncos enormes que iam se afunilando conforme a gente descia os olhos. Brochante viu. Eu não sinto nada vendo um homem-triângulo na minha frente. Só dó e vontade de rir mesmo.

Voltando para mim…. Eu precisava também fazer algum exercício aeróbico. Eu que sempre fui anaeróbica por natureza deveria acelerar meu coração com um certa frequência e mantê-la por um determinado tempo. Dentre as opções, a que menos odiei foi aquela coisa de ficar pulando, o jumping. O problema é que eles fazem aquilo com música alta! e não era Beatles, Chico Buarque, Elis não. Era funk! Mas não é só isso! Fica uma mulher gritando lá na frente como se aqueles berros tivessem algum efeito no meu ânimo. Mas gente… que inferno… Como sobreviver nesse ambiente?

Não gostava das músicas, achava todo mundo esquisito, não conseguia beber água como eles e nem fazer nada com alguém me olhando – e sempre tem alguém te olhando te apressando para a gente fazer tudo rapidim e eles pegarem nosso lugar. Se fosse só isso, beleza. Mas não. Mal a gente larga o aparelho eles vêm e calibram o peso dos ferros para os músculos deles que suportam toneladas e toneladas. Humilhação e constrangimento geral. Definitivamente, eu estava no lugar errado.

Não me adaptei e entrei em desespero com os meus músculos flacidando. Até que descobri o Pilates. Músicas calmas, uma fisioterapeuta ao seu lado que não fica berrando como uma louca no seu ouvido, exercícios que desafiam também a sua mente e nada repetitivos… há quatro anos estou nessa vida e, pasmem, não tenho a menor intenção de abandonar. Para o coração, fiquei com a corrida de rua. Meia hora duas ou três vezes na semana e está ótimo. Ouço pelos fones o que quiser. Paz. Santa paz.

A preguiça continua gigante. Mas sempre que penso em não fazer, lembro dos amigos novos (como eu) com joelhos ferrados, hérnias de disco e que não aguentam com a minha idade subir escadas sem ficar com um palmo de língua para fora. Não preciso ir com fantasias e adereços para o meu Pilates e sinto-me uma menina no meio daquelas senhorinhas!

É isso. Vai que você é do meu time… fica a dica.

Beijo, gente!

Metáforas da Vida

abraço-elefante-9-razões-para-dar-e-receber-abraços-todos-os-dias

– Estou com um problema no meu chuveiro elétrico. – Disse para o técnico-atendente da loja.

– Pois não, senhora. Qual é o problema? – Perguntou-me com uma voz afeminada.

– O meu chuveiro sofre da metáfora da vida.

– Não entendi, senhora. Discorra sobre o tema. – Pediu-me virando a cabeça para o lado.

– Algo assim acontece: Um filete de água gelada cai no meio da água quente. É pequeno, mas incomoda muito. A temperatura seria perfeita, a quantidade de água idem, meu banho seria relaxante se não fosse por esse pequeníssimo filete. Poderia ser perfeitamente feliz, se não fossem esses átimos de frieza, entende agora?

– Perfeitamente, senhora. Acho que consigo te ajudar. Posso, primeiramente, te dar um abraço? 

Após este acolhimento, o técnico-clodovil olhou sério para mim, aconselhou-me a comprar um outro chuveiro e a desapegar-me do velho.

– A solução pode ser também uma metáfora. – Acrescentou com um sorriso sincero.

E a música de fundo “Amigo Estou Aqui de Toy Story” tocou nos meus ouvidos ao permitir um contato no plano físico e metafísico com um inesquecível desconhecido.

Em que medida expulsando Beto Richa a situação muda?

professores doentes

Eu até agora não havia me manifestado em relação ao caso Beto Richa versus professores do Paraná. Ando aqui calada. Pensando. Não que não ficasse revoltada e achasse tudo um absurdo mas, sinceramente, temo como professora pelas consequências desse movimento ao ver tanta gente esbravejando, querendo expulsar Beto Richa e gastando tanto energia para isso. Explico-me:

Entendo todo o alvoroço com Beto Richa e acho que ele deve responder pelo o que fez com os professores. Como todos, quero justiça e exijo respeito. Fui, porém, antes de ser professora do CEFET/RJ, uma escola federal de excelência, professora na rede estadual e particular. Quanto a isso, tenho a dizer que visitei o inferno e já vi inúmeras vezes o capeta.

No caso das escolas estaduais do Rio de Janeiro, eu dava aula em uma sala sem janela, ventilador, ar condicionado e mesa de professor. Como se isso não fosse suficiente, meus alunos do Ensino Médio eram, em grande parte, quase analfabetos. Some-se a isso o fato de alguns irem para escola armados e ameaçar com frequência os professores. Não é raro lermos notícias de professores sendo agredidos por alunos e pais de alunos. Essa é uma parte da realidade de um professor da rede estadual. A outra é o salário que todos sabem.. é surreal.

Pergunto-me: eu não moro no Paraná, não sou professora do Paraná, não teve pitbull me mordendo e não fui atingida por bala de borracha no rosto, mas em que medida a agressão que os professores de outros estados sofrem é menor? Por que não consideram que sangramos a olhos vistos todos os dias há anos neste país?

E quanto ao meu trabalho em Escolas Privadas? Em verdade vos digo, não sei o que foi pior. Esclareçamos para início de conversa que escola privada, a despeito das altas mensalidades, e educação de qualidade não andam de mãos dadas e sequer são sinônimos. Em reuniões fechadas, os diretores sempre se sentiam muito à vontade para nos ameaçar. Ou deixávamos os alunos felizes ou seríamos demitidos. Ou faríamos o que os diretores mandassem ou rua. Nessas escolas, há sempre turmas especiais com os “melhores alunos” que darão nome ao colégio pelo índice de aprovação no vestibular. Para todos os outros, a ordem é fazer aquele café com leite e pronto. Mantê-los ali dentro para que o nosso salário esteja garantido. Não vi pelas escolas particulares em que andei preocupação com a formação de um futuro cidadão. E pelo que sei, são raríssimas as escolas particulares que têm, de fato, compromisso com a educação. Dito de outra forma, não pisei em escolas que vissem o aluno como um ser em formação – e não um cifrão.

Os pais da classe média deste país matriculam seus filhos em escolas particulares pensando em um futuro melhor, quiçá seguro. Mal sabem que, a despeito do filho passar para uma universidade federal, ele não passa, em certa medida, de um boçal devidamente formado pela escola com sua criatividade devidamente engessada. Ainda assim, esse jovem se acha melhor do que outros e é levado a acreditar na tal da meritocracia.

O fato da escola ter um bom índice de aprovação no vestibular não quer dizer que seu filho tenha recebido uma educação de qualidade por ter estudado nela. Quer dizer sim que seu filho foi ou será bem adestrado para fazer uma prova. Parafraseando Rubem Alves, há escolas que são gaiolas que existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Mas há outras escolas que são asas – essas são raras e eu, infelizmente, só conheço de nome. Elas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo e elas o encorajam. Enfim, o que Rubem Alves queria dizer é que educação é algo muito mais complexo do que preparar o aluno para tirar uma boa nota no ENEM.

A realidade é que nós, professores, de uma forma geral, ou bem viramos marionete de diretores que percebem as escolas como uma empresa ou bem fingimos que ensinamos algo recebendo o salário que recebemos e nas condições em que trabalhamos. E todos nós, adultos, que vimos literalmente professores sangrando somos resultado de uma ou outra “educação”. A quantidade de gente achando o cúmulo o massacre dos professores do Paraná e tomando as dores ‘somente’ desses professores mostra o quão pessimamente fomos todos educados. Aprendemos a aceitar as mazelas do sistema, convivemos bem com os professores de todo o país apanhando diariamente de todos os lados, lidamos com apenas um lamento ao lermos uma notícia que os professores do Brasil – quer sejam eles de escolas públicas ou particulares – estão se drogando para aguentar a lida e que o Brasil é um país que tem um dos piores salários de professores do mundo e que isso já rola há séculos por aqui. A humilhação diária dessa classe não comove tanto quanto o sangue escorrendo dos professores do Paraná. Por que será?

Pergunto: Em que medida expulsando Beto Richa a situação muda? Em que medida um impeachment desse governador pode ser considerado uma vitória ou sinal de que as coisas vão melhorar?

Enfim, não que eu não lamente profundamente as imagens que vi. O ponto é que sei – pela minha prática – que elas são verdadeiras metáforas do que ocorre não só em Curitiba, mas em todo o Brasil. E, do jeito que fomos todos educados, temo que a saída – ou a punição – de Beto Richa, pela qual torço e acho necessária que aconteça mas, que a meu ver funciona, numa certa medida, como um esparadrapo colocado em cima de uma fratura exposta, dê a sensação de que algo verdadeiramente efetivo foi feito pelos professores deste país.

Nós, as Mães

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Hoje na fila do caixa do supermercado uma criança começou a pedir um mentos-chiclete desses que ficam no corredor clamando para pegarmos e que custam mais que um quilo de filet mignon. A mãe falou não. Muito caro, disse ela. Achei justo. Balancei a cabeça positivamente de forma discreta como um reflexo de aprovação. Daí, o menininho desatou de chorar alto fazendo escândalo. Eu ali. Firme. A mãe explicou calmamente as prioridades dela e ofereceu um outro mais barato. Balancei a cabeça de novo, dessa vez com mais vontade já de forma consciente mesmo. O garoto não queria saber. Partiu para ofensa verbal. Xingou a avó e tudo. E eu ali. Firme. O guri começou então a bagunçar toda a prateleira. Eu ali. Firme mas já quase oferecendo a minha sandália plataforma para a mulher fazer o serviço. A mãe, então, serena, disse para o moleque que ele estava sem videogame, sem televisão e que não adiantava pedir desculpas! que o castigo seria mantido. O pivete sossegou, mas mostrou a língua para ela assim que ela se virou de costas para ele e começou a passar as compras dela no caixa. Eu ali… Firm… Peguei a caixa de mentos, balancei na frente do monstrengo fazendo barulhinho de chocalho, abri, joguei todas as pastilhas de uma vez na boca e comecei a mastigar de boca aberta babando açúcar olhando bem nos olhos dele com o sorriso do Coringa.

Nós, mães, somos meio assim. Cuidamos uma das outras e de vez em quando alopramos pensando no futuro da humanidade.

Seguindo em Frente

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– Ok. Pode ficar tranquilo. Não irei mais te importunar com as minhas mensagens desesperadas querendo entender o motivo pelo qual você me deixou. Não irei mais ligar para você. Quando um não quer, não adianta forçar. É apenas mais humilhação e desprezo que a gente recebe. Eu não mereço isso. Controlarei minhas vontades, segurarei meus ímpetos, darei um jeito de sufocar meus sonhos com você, pode deixar. Vou lhe dar paz agora. Compreendi a situação em que me encontro. Vou aceitar. Vou achar o meu caminho. Tocarei minha vida sem você.

Dito isso, ela seguiu em frente.

Estava, porém, à beira de um precipício. Morreu ao cortar seus impulsos.

Poleiros

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Houve uma época em que era super normal dois homens lutarem até a morte para entreter uma multidão. Já foi normal escravizar pessoas, arrancá-las da família, separar mães de filhos e castigá-los chicoteando até que lhes rasgassem as carnes. Já foi normal casamento arranjado em que o casal se unia para sempre por vontade e interesse somente dos pais. Já foi normal mulheres não estudarem. Já foi normal professores fumarem dentro de sala de aula. Já foi normal casar-se virgem. Já foi normal festinhas de aniversário feitas em casa utilizando rolos de papel higiênico encapados de papel crepom como enfeites da mesa do bolo. Já foi normal patinar no gelo sem capacetes, joelheiras e cotoveleiras, andar sem cinto de segurança com o bebê no colo da mãe no banco da frente. Já foi normal as mulheres fazerem “permanente”, um tipo de penteado misturado com um processo químico poderoso que encrespava todo o cabelo. Já foi normal todas as crianças brincarem de iô iô na hora do recreio. Já foi normal passarmos metade do dia enquanto éramos jovens em uma escola e não usarmos nada do que aprendemos naquelas salas de aula na vida adulta. Já foi normal trabalharmos a semana inteira em algo que odiamos e mal termos tempo para gastar o dinheiro que ganhamos com isso. Já foi normal comermos coisas sem saber a procedência ou mesmo sabendo que estavam cheias de veneno, também já foi no normal comê-las sem crise de consciência. Já foi normal termos milhões de informação ao nosso dispôr e passarmos dias compartilhando somente bobagens. Normal já foi ficarmos o dia inteiro com um aparelho na mão e dormir com ele ao nosso lado. Já foi normal passarmos por deficientes físicos pedindo esmola e nada sentir. Já foi normal termos o colesterol, triglicerídeos, pressão, sono e ansiedade controlados por remédios e acharmos que vivíamos com saúde. Já foi normal gastarmos rios de dinheiro para viajar e chegando ao lugar do destino perdermos tempo tirando e postando fotos e mal percebendo o que está a nossa volta. Já foi normal chegarmos em casa reclamando para mostrarmos, a nós mesmos e aos outros, que trabalhamos muito e tivemos um dia duro, como se isso fosse algum tipo de mérito…

O que seria ser ‘normal’, afinal? Não parece ser uma espécie de doença coletiva? E o louco nessa história? Seria quem não perdeu a própria razão? Aquele que se recusa a fazer parte desse cenário esquizofrênico… é ele o doente mental? Não parece razoável considerarmos que ‘normal’ nada mais é um conjunto de hábitos admitidos pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos?

Vivemos em constante epidemia. Curar-se dessa mesmice crônica é fugir dos padrões, é ser a ovelha azul da família, é dizer não a esse modelo de escassez que está no comando. É sair da zona de conforto, esse aparente estado de comodidade que nos leva a morte em vida. É abraçar a si próprio, beijar a sua verdadeira vontade, copular com sua essência e saber, enfim, o que é aquela imagem que se reflete no espelho. Isso, portanto, requer construir suas próprias verdades e não se apropriar de tantos enganos. É perceber o quanto é limitado tudo isso que dizem fazer sentido. Sarar-se é abrir a gaiola para dar fim não a prisão do passarinho – pois este já não sabe viver em total liberdade – mas ao diabo desses poleiros.