Estranha Mania

Ontem eu e Pipo mega fofos fomos ver Bitucanto – um show com um coro fodástico com músicas de Milton Nascimento tendo nada menos do que o gênio José Assumpção como regente.

Ao final do espetáculo, o hall do teatro estava lotado com pessoas parabenizando os artistas.

Eu e Pipo lá mega fofos esperando nosso amigo Daniel, vulgo Dani Ramalho, que divou no palco da Sala Cecília Meireles dividindo o oxigênio com Zé Renato (mais essa honra na noite).

Até que chega uma mulher com o celular na mão sorrindo pronta para tirar uma foto:

-Elika e Pipo, seus lindos!

Eu e Pipo lá mega fofos ficamos mais fofos ainda com o rostinho colado um no outro e sorrindo para a super fã giga simpática que nos ama a nos reconheceu no meio da multidão.

-Vocês podem chegar para o lado que eu quero tirar foto do painel?

Tóim tóim tóim. Mil martelos de borracha bateram na nossa cabeça.

Eu e Pipo com a fofura toda descaralhada ficamos sérios, chegamos para o lado para a mulher sem alma fazer o registro da parede.

Quando Daniel, o Dani Ramalho, chegou logo após cumprimentar seus cinco fãs, eu e Pipo estávamos murchos de pé tipo Maria Maria – essa gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta.

Contamos para nosso amigo, a estrelinha da noite, o massacre que fizeram com a nossa auto estima para justificar aquele sorriso amarelo e o quanto estávamos nos esforçando para ter manha, ter graça, ter sonho sempre.

Daniel, o pavão, que quer ser conhecido mundialmente por Dani Ramalho, depois de ouvir nossa derrota, mandou logo essa para encerrar a noite:

-E meu amigo que enviou agora um Whatsapp para mim dizendo que a empresa tal estava procurando por homens lindos entre 20 e 30 anos para servir de modelo?

Eu e Pipo sem cor nem fofura ouvindo.

Daniel, vulgorésimo Dani Ramalho, o pavãozaço, completou:

-Eu todo feliz lendo aquilo e ele vai e me pergunta logo em seguida se eu conheço alguém para indicar. Ah gente…

Saímos de lá correndo e fomos pro bar.

Falar de nossos projetos para o futuro.

Porque é aquele ditado né: quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida.

Aí o AI-5

ditadura-militar Brasil

Em tempos que professores de história são criticados por explicar o que é o comunismo, que livros como “Meninos Sem Pátria”, lançado na década de 80, são retirados da lista de leitura do sexto ano porque a escola foi acusada de “doutrinar crianças com ideologia comunista em sala de aula”, que pessoas que defendem direitos humanos são chamadas de comunistas (como se isso fosse xingamento), enfim, em tempos que, diante da oportunidade de ter um professor como presidente, ter sido  eleito um militar de reserva que se comunica com o número de caracteres permitido pelo Twitter e que pessoas que reclamavam da “ditadura do PT” batem palmas vendo mais militares na nova equipe de governo, vale recordar o que aconteceu em dezembro de 1968, há exatamente 50 anos.

No dia 13 de dezembro de 1968,  durante o governo do general Costa e Silva, foi anunciado em cadeia nacional de rádio e TV, o texto do Ato Institucional nº 5 (AI-5). O documento era composto por 12 artigos e vinha acompanhado de um Ato Complementar no 38, que fechava o Congresso Nacional por tempo indeterminado. Ele vigorou por dez anos e produziu uma série de ações arbitrárias de efeitos incomensuráveis. Deu poder de exceção aos governantes para punir os que fossem inimigos do regime ou como tal fossem considerados.

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Como o próprio número indica, esse não era o primeiro ato institucional que os militares tinham imposto desde 1964. Houve o AI-1, AI-2, AI-3 e o AI-4. Entre outras medidas, esses atos institucionais legitimaram o golpe e concederam maior poder ao presidente, suprimiram as eleições diretas para presidente, liberaram a prisão em massa, autorizaram a busca nos domicílios, atribuíram à Justiça militar competência para julgar civis que haviam cometido crimes contra a segurança nacional, instituíram o bipartidarismo – a Aliança Renovadora Nacional (Arena) representava o partido do governo e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) posicionava-se como oposição e sofria sob a constante ameaça de cassação -, suprimiram as eleições diretas para governadores dos estados e prefeitos das capitais e convocaram deputados e senadores para eleger o novo presidente e elaborar uma nova Constituição. Para além disso tudo, pouco antes de deixar o governo, Castello Branco decretou a Lei de Segurança Nacional, segundo a qual qualquer pessoa considerada desestabilizadora do regime instituído poderia ser alvo de austeras punições.

Mas o AI-5 teve suas particularidades que foram o maior símbolo  da essência da ditadura. Assim como hoje vemos muita insatisfação da oposição, manifestações, indícios de greves, e reclamação da classe trabalhadora com as medidas que a prejudicam, naquela época, não era diferente. Estávamos longe de um consenso.

O pretexto para um ato institucional dessa gravidade foi a recusa do Congresso Nacional em autorizar o processo judicial contra o deputado Márcio Moreira Alves, que  tinha denunciado dezenas de casos de tortura, durante o governo de Castello Branco. Ele foi acusado de ser autor de “discursos ofensivos às Forças Armadas”. Moreira Alves, do MDB, vale lembrar, em plena Câmara no mês de setembro havia lançado um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do 7 de Setembro e para que as moças, “ardentes de liberdade”, se recusassem a sair com oficiais. Quando tentamos ponderar e liderar um movimento de oposição contra pessoas que não têm paciência para o diálogo – ferramenta essencial em um regime democrático – um pedido  desses para não desfilar e uma tentativa de empoderar as mulheres foram considerados ofensivos a ponto de justificar mais um ato institucional.

Com o decreto baixado suspendeu o habeas corpus, proibiu que advogados e familiares visitassem a pessoa presa e censurou a imprensa, entre outros atos de repressão. Foram permitidas cassações de mandatos e de direitos de cidadania e autorizadas demissões sumárias. Estabeleceu-se que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais militares, sem direito a recurso.

Não restam dúvidas que tudo isso era uma tentativa de calar a sociedade pelo medo, de restringir a participação política de quem pensava diferente, de legalizar o extermínio, de ter carta branca para emudecer as vozes da oposição. Estava dado o poder para serem mais  enérgicos no combate a “idéias subversivas” sem limites judiciais. O diagnóstico militar era de que havia “um processo bem adiantado de guerra revolucionária” liderado pelos comunistas.

Qualquer semelhança com a atualidade é mera iminência.

O AI-5 deu autorização, dentre outras coisas, para que o presidente da República – sem apreciação judicial  – decretasse o recesso do Congresso Nacional, interviesse nos estados e municípios, cassasse os mandatos parlamentares e suspendesse por uma década os direitos políticos de qualquer cidadão. No início do ato, explicava-se que ele era uma necessidade para atingir os objetivos da revolução, “com vistas a encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país”.

No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado.

O saldo de 1968 foi negativo: 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves. Mas nada é tão ruim que não possa piorar (como estamos vendo em 2018, cinco décadas depois). Em 1969, a lista de cassações atingiu não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 foi o verdadeiro símbolo da intolerância em uma época de grande  polarização ideológica. A censura política foi um mecanismo de desmobilização e de supressão da divergência de pensamento.

Qualquer semelhança com a atualidade é devido a resistência.

Os “desaparecimentos” começaram a ocorrer. O paradeiro de muitos opositores mortos sob a guarda do Estado até hoje é um mistério. Sabemos da retirada de arcadas dentárias, das digitais e de esquartejamento de corpos para dificultar a investigação. Por mais absurdo que pareça, tudo isso –  somado à prática de torturas – era permitido pelo Estado que possibilitou essa forma de eliminar qualquer pessoa que fosse contra o que os militares decretavam como bom e como verdade.

A violência e as cicatrizes do regime militar estão nos livros de história e nas histórias, nas mentes, nos álbuns, nos corpos, nas músicas e nos filmes de conhecidos, amigos, parentes, artistas e professores. Foram mais de 11 anos da perda de direitos democráticos. A Constituição de 88 anunciou a volta do Estado de igualdade de direitos no país. Assim passamos a ter um sistema capaz de resolver os nossos conflitos políticos e solucionar impasses na base da legalidade e sem o uso de qualquer forma de exceção ou de censura.

Não há garantias, científica e filosoficamente falando, de que o que aconteceu no passado irá se repetir. Por outro lado, temos todos os motivos para acreditar, dado tudo o que estamos ouvindo dos militares – que estão compondo a equipe do eleito e que já são maioria – que há um fechamento para o diálogo já que, para que ele ocorra, é preciso que todas as partes tenham segurança para expor seus argumentos e sejam incentivadas a fazê-lo.

Não podemos nos esquecer que o eleito em um discurso como candidato fez questão de dizer que iria “botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Como presidente, ele pretende criminalizar os movimentos sociais e qualquer tipo de manifestação que se oponha ao seu governo. O Projeto de Lei do Senado (PLS) 272/2016 quase foi votado em Outubro na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da casa. O PLS enquadra como terrorismo os atos de “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado”, com penas de até trinta anos de prisão além de criminalizar e prever penas de cinco a oito anos de prisão para quem abrigar pessoas que tenham participado de manifestações e passeatas. Além disso, o projeto Escola sem Partido que pretende tirar a liberdade de cátedra do professor sobre o pretexto de querer evitar que uma suposta doutrinação nas escolas continue acontecendo e a demonização da arte e de vários artistas flertam com a natureza da censura legalizada no AI-5.

Daí para proibir toda e qualquer possibilidade de oposição, de conviver com o antagônico não falta nada.  Até mortes já ocorreram. E muitas “sem explicação”.

Qualquer semelhança com o passado seria mera coincidência?

Já vimos muita coisa acontecer pelo mundo. Mas um povo que escolhe um presidente que declara com todas as letras que quer um novo AI-5,  que apoia a tortura e grupos de extermínio e é a favor da censura, ou seja, um povo que vota contra seus próprios direitos, só vimos aqui no Brasil em 2018. Isso foi possível graças a um trabalho massificante de lavagem cerebral feito pela grande mídia que segue aliada ao grande capital.

Essa é a prova do quão frágil é a nossa democracia e o quanto temos que lutar para que ela não seja eliminada. Se piscarmos, vamos nos encontrar nos porões da ditadura fazendo parte de um cenário horripilante  como vimos nos livros de história.

A frase usada como  “grito de pavor”, durante a ditadura militar, quando os agentes do regime cortavam a luz para invadir o local, faz-se necessária em plena luz do dia: Ninguém solta a mão de ninguém. Estamos combinado?

Que Deus lhe dê sabedoria, Damares, que parece que tanto lhe falta.

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Que esse réveillon vai nos levar à Idade Média já estávamos prevendo. O que assusta é que isso está sendo feito em plena era onde a informação está na palma das mãos.

A nomeação de novos ministros segue sendo coerente com o discurso e a postura do eleito. Para que haja algo passível de credibilidade, basta um meme. Mexer com a emoção na Era Bolsonaro é a maior prova de autenticidade. Ninguém mais liga para uma construção de conhecimentos postos à prova e uma discussão profunda sobre temas complexos. Sequer pesquisas científicas são consideradas.

Kit gay e mamadeira de piroca eram somente a ponta do iceberg. Quem acreditou nisso fica repetindo que o PT “quer impedir que crianças nasçam” porque, “para a esquerda, todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”, que o aquecimento global é invenção de comunista assim como as vacinas são maléficas, que a terra é plana, que agrotóxico é sinônimo de vida longa e, como se tudo não fosse suficiente, fica delirando pelas ruas achando que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente.

Seria lindo se bastassem essas crenças para que os problemas reais dessa bagaça chamada Brasil fossem resolvidos.

O ponto é que não é porque quase metade do país não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas. Não é porque haja uma alucinação em massa acreditando que o problema das salas de aula seja que “os professores viraram exemplos de como se faz filme pornô” e que “a pedofilia é a meta pedagógica a ser alcançada” que o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil vão melhorar.

No último episódio do House of Paranauê, vimos bater o martelo do nome da futura ministra da mulher, da família e dos direitos humanos: a pastora Damares Alves.  

Damares é desde 2015 assessora parlamentar do senador Magno Malta, aquele que está triste e chateado por não ser indicado para ser ministro de nenhuma pasta depois de tanta babação de ovo e que é uma das principais figuras da bancada evangélica.

A pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular terá a missão de formular pautas para os grupos mais vulneráveis da sociedade, ao mesmo tempo em que terá de responder à base conservadora que ajudou a levar Bolsonaro ao poder. Vale lembrar que o eleito é um político que rejeita o conceito de “minoria” e relativiza até mesmo o de direitos humanos. Como Damares irá fazer seu trabalho… nem Deus sabe.

Há séculos as mulheres lutam pelos direitos iguais e avançamos muito em várias pautas. Mas a futura ministra tem como modelo de felicidade um casamento onde o marido é o provedor e a mulher administradora da casa e dos filhos.

Há inúmeras formas das mulheres serem felizes e casos e mais casos onde uma vida foi reconhecidamente desperdiçada sendo bibelô de marido. No entanto, a pastora insiste que “hoje, a mulher tem estado muito fora de casa […] Gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade. Mas, não é possível. Temos que ir para o mercado de trabalho”.

Não, pastora. O ideal de sociedade é quando todas as pessoas podem escolher o que querem fazer. Nós, mulheres, damos aulas, consultas, palestras, escrevemos, advogamos… sabemos, queremos aprender e fazer mais tantas coisas, pastora. Entendemos que a nossa independência financeira é importantíssima para nossa libertação, satisfação e crescimento pessoal.

Para Damares, é a igreja evangélica que “vai mudar a nação”, não a política.

Pastora e futura ministra, não passe por cima da Constituição que assegura a laicidade do Estado, por favor. Saiba que o fato de não ter nada contra religião alguma não significa que eu seja a favor de ter a sua ditando as regras da minha vida. Não quero seus “valores cristãos” para mim. É um direito meu e de toda essa nação não querer – como leis – dogmas religiosos.

A futura ministra disse que não é verdade que o aborto é questão de saúde pública (como defendem especialistas) e que “gravidez é problema que dura só nove meses”.

Não, pastora. Gravidez não é problema. Você não entendeu qual é a grande questão. A justificativa para a legalização do aborto é que ele sempre ocorreu e vai continuar ocorrendo, quer sejamos contra ou não. Não seja cega nem hipócrita. Mulheres ricas abortam. Mulheres brancas abortam. Mulheres pretas abortam. Mulheres pobres abortam e o índice de mortalidade dessas últimas é altíssimo. Se for legalizado, poderemos dar toda a assistência para elas. Inclusive, em alguns casos, teremos meios para impedir, como a senhora e o resto de nós desejamos, que o aborto não aconteça.

As causas para que muitas de nós recorramos ao aborto são inúmeras e envolvem também o fato de sermos um país em que quase 6 milhões de crianças não são reconhecidas pelos pais. Como diz o eleito, pastora, tem que ver isso aí.

Temos que pensar em uma reeducação na sociedade como um todo. Precisamos ser menos machistas, racistas e acabar com a misoginia e todo o tipo de preconceito quando debatemos sobre o aborto. “Esterilizar as mulheres pobres” como defendeu o eleito é uma covardia e totalmente contra a pauta dos Direitos Humanos que a futura ministra representa.

“A mulher aborta acreditando que está desengravindando (sic), mas não está”, disse a pastora achando que estava se comunicando.

Seja mais clara, Damares. Assim vai ser difícil.

Saiba, pastora, que falar em esterilização forçada é ignorar problemas estruturais e as desigualdades que vivemos em nosso país​. Precisamos atacar esses problemas e não mascará-los, futura ministra. Lembre-se de que a maquiagem se tira antes de dormir.

Damares disse que “ninguém nasce gay”. Ela desconsidera todos os estudos e debates feitos sobre o tema como o ocorrido recentemente na Universidade da Califórnia que chegou a fortes indícios de que todo mundo tem um gene gay mas ele só se manifesta se um grupo metil se ligar a regiões específicas do DNA. Desconsiderar pesquisas não é o pior. O pior é considerar a pseudo-ciência e apontar que é possível que “os gays sejam curados”, aumentando ainda mais a homofobia em nosso país.

Por fim, pastora, pare de propagar tantas mentiras. Você sabe que muitos crentes são capazes de acreditar em tudo que lhes fale, supostamente, em nome de Deus, e você se aproveita muito disso.

A senhora já falou – para pessoas presentes no culto evangélico – que a Prefeitura de São Paulo ensinou professores em creches a masturbarem bebês e colocou em sua explanação como referência uma matéria de jornal que, de fato, trazia outra informação: a produção de materiais “para ensinar educadores municipais a lidar com temas como ereção e masturbação infantil”, elemento estudado por Sigmund Freud já nos anos 20 do século passado. Distorceu tudo, Damares. Por quê?

Que diabos de cartilha é essa que você disse que o professor coloca em cima da mesa e que usa para ensinar as crianças que têm que “passar protetor labial nos lábios antes de usar crack para os lábios não ressecar”? Ainda disse que essa cartilha foi feita pelo SUS para usar em postos de saúde e escolas…

Meodeos, Damares. Nos sites dos Ministérios da Saúde e da Educação não há qualquer cartilha com tal conteúdo! O que temos são várias outras, todas de caráter educativo e preventivo quanto à dependência química.

Pare de mentir, Damares.

E pare também de andar ao lado do deputado eleito Julian Lemos (PSL-PB). Ele já foi acusado de agressão pela irmã e pela ex-mulher e foi alvo de três processos por violência doméstica. Fica o conselho já que perdi a conta de quantas fotos vi vocês dois aparecem juntos.

Pastora, quando ouvi da senhora que temos que fazer uma revolução cultural para combater a violência contra a mulher, confesso, tive esperanças de que você falaria de machismo e misoginia. Mas não: “Todos os meninos vão ter que entregar flores para as meninas nas escolas, para entender que nós não somos iguais. Quando a teoria de gênero vai para a sala de aula e diz que todos são iguais e que não tem diferença entre menino e menina, as meninas podem levar porrada, porque são iguais aos meninos”.

Respeito não é dar flores, Damares. Os parceiros que mataram nossas manas conquistaram assim. Acorde, pastora.

Não sei como dizer isso sem parecer prepotente, Damares, mas vai ser necessário você deixar a burrice de lado e se abrir ao diálogo se quiser diminuir, de verdade, os números de casos de estupro, violência doméstica e feminicídio.

Sei que você é capaz, Damares. Afinal, você é mulher e está aí nesse cargo de poder porque muitas de nós lutamos para isso quando nos recusamos ao papel que sociedade nos impôs por tanto tempo: ser capacho de marido e ter uma posição subalterna aos homens.

Que Deus lhe dê sabedoria, Damares, que parece que tanto lhe falta.

 

Mudanças…

josé

Preciso lhes contar que me mudei no sentido físico e literal. Ou seja, mudei a mim mesma e de endereço. Não sei explicar como consegui. Mas quero tentar.

Há 45 anos morei em Madureira. Quando não na casa de minha mãe e do meu pai, ao lado deles. Ao ver vendendo um cafofo numa vila na mesma rua em que meus pais moram, tratei de comprá-lo quando me casei. Várias coisas me ocorreram, mas a verdade é que quis oferecer para meus filhos o que tive de melhor em minha vida: a convivência com meus pais.

Os três cresceram com a vovó ajudando nos estudos e nas pequisas chatéééérrimas que a escola sempre pede e com vovô levando-os para cima e para baixo. Todos meus filhos têm em meus pais uma referência. E eu sempre tive meus melhores amigos incentivando meus maiores vôos. Se fiz tudo o que fiz, foi porque, acima de qualquer coisa, sou uma privilegiada.  Bato no peito falando que fiz doutorado, mestrado, curso de italiano e tudo o mais sendo mãe de três. Mas nada seria possível se meu CEP não tivesse sido, por tanto tempo, igual ao dos meus pais.

O outro lado dessa história é que não havia um dia em que não reclamasse do trânsito, da distância e por ter perdido vários encontros e eventos – porque em Madureira não se brinca chegando sozinha de noite. Meu trabalho, reuniões politicas, livrarias e bibliotecas que frequento… infelizmente, nada estavam perto de mim.

O fim de um casamento de quase vinte anos me deu desespero. Nelson saiu de casa e tudo ali me fazia lembrar dele. A casa havia ficado vazia e, embora eu não me arrependesse da decisão, não estava encontrando em mim forças para manter o que havíamos deliberado. Rico quando passa por isso faz uma viagem, reforma no banheiro, compra móveis novos… meu dinheiro deu para trocar o estofado do sofá e comprar uma cortina para a sala. Eu que me virasse com tanto barulho na minha cabeça. Mais do que nunca, precisei dos meus pais. Era só eu e as crianças.

Estava cada vez mais distante a possibilidade de modificar meu endereço.

Aprendi a fazer a gestão de uma casa com muitos seres vivos circulando nela. Hideo tem amigos e, agora, a doce Sara. Nara tem Daniel e a Marie Curie, nossa vira-lata. Eu tenho a Lucimar que trabalha e mora comigo há mais de vinte anos e Yuki tem a Tina, a gata mais temperamental que já conheci.  Tornei-me a provedora e rainha desse castelo. A despeito de ter trabalhado duro para fazer de nossa casa o lugar preferido de todos eles e ter ficado bem feliz e satisfeita por conseguir isso com louvor, confesso, estava exausta com aquelas paredes, com o mesmo caminho, com engarrafamento, com o trem e, preciso admitir, estava desajeitada com tanta gente. Lia e escrevia cada vez menos – sintomas  graves de que eu não estava nada bem.

Mas era impossível qualquer outra configuração. Mãe é mãe e estamos aqui para carregar o mundo nas costas e anular nossos sonhos em prol da estabilidade emocional dos filhos e…

Quando vi, quatro anos se passaram. Nara de adolescente virou uma mocinha cheia de ideias que me surpreendem e achou Daniel. Hideo se formou e Yuki começou a ter cecê. Pipo apareceu na minha vida para me mostrar que tenho um mar de amor e um tesão infinito dentro de mim – coisas que cheguei a pensar não ser mais capaz de sentir.

(Estava a ponto de tomar hormônios sugeridos pelo médico. Que surpresa boa foi descobrir que não estava seca e sim deserta).

As exigências da minha vida – emocionais e financeiras – não permitiam que eu realizasse meu sonho de tantas mudanças. Estava presa na história em que havia escrito, nos quadros que havia pintado, nos retratos que havia tirado. Foi quando vivi uma experiência reveladora:

Estava eu no metrô lotado indo para o centro da cidade. Lembro-me de que queria pegar meu celular na bolsa e não tinha espaço para movimentar meus braços. Até que algo aconteceu e demos uma freada brusca. Teve gente que chegou a cair. Depois de um tempo, nos rearrumamos e o metrô desatou a andar. Surpreendentemente, aquela repentina desaceleração fez com que ficássemos muito mais confortáveis. Sobrou até espaço e consegui não só pegar o celular como também os fones de ouvido sem encostar em ninguém. Não mudou a quantidade de pessoas. Mas uma força inesperada – que a princípio assustou e causou gritaria – trouxe, logo após, a sensação de paz e aconchego. Olhei tudo ao redor e entendi o funcionamento do mundo e das minhas prisões.

Como disse, as exigências da minha vida não permitiam que eu realizasse meu sonho de mudanças. Depois que o metrô freou, resolvi modificar as exigências para tornar meu sonho possível.

Por que tenho que morar com todos eles para sempre? Por que esperar que todos fiquem independentes para eu ir embora? Desde quando eu sou independente de alguém? Onde está escrito que são os filhos que têm que sair de casa e não eu? Onde está escrito que eu sair de casa deixando dois adultos configura abandono? Onde está a garantia de que se eu morar na mesma casa que meus filhos o resto da vida eles não terão problemas de cabeça? Há pessoas que, por morar na mesma casa que o pai e a mãe, são equilibrados emocionalmente? Quem disse que meu dinheiro não vai dar? Que tipo de comodidade precisamos para viver?

Não queria mais ser a escrava da minha identidade. As raízes pediam outro solo. Sentia em mim uma necessidade de mudanças, estava inquieta, infeliz e decidi, não sem dor, partir. Sabia que Hideo não viria comigo, surpreendi com a Nara preferindo ficar para ter mais privacidade, Lucimar poderia ficar com eles ou na casa de minha mãe. Comigo, trouxe somente Yuki, minhas roupas e uma tonelada de livros. Deixei tudo para eles e continuo dando toda a assistência até que eles consigam tocar aquele castelo sozinhos. Pela primeira vez, pago aluguel. Tudo bem que estamos na mesma cidade e que tem gente que se muda para outro país, mas cada um sabe o tamanho do muro que construiu e o tipo de material usado nessa obra.

Nunca havia me mudado e não sabia como começar. “Não sei me mudar”, falei várias vezes desesperada para o Pipo com o coração espantado. Me assombro com minha insegurança e com o hábito de fazer as coisas morrendo de medo. Sou o que faço, mas sou, principalmente, o que sinto para fazer o que faço. Noites acordadas, dias com enxaqueca, estômago inquieto, pressão vacilante, olhar disperso. Orando sendo ateia. Não encarar a travessia – pelo fato do rio estar demasiado turbulento – seria uma violência com a minha vida. Eu precisava saber o que tinha na outra margem me esperando. Fosse o que fosse, cada braçada era possível porque não construí barreiras ao ver o nível da água subir. Fiz um moinho com meus braços.

Tudo de errado aconteceu. Como disse, não sei me mudar. Incrivelmente, da mesma maneria de quando terminei o casamento, ainda que o universo parecesse conspirar contra mim, estava, que deus me perdoe, cheia de culpa mas extremamente feliz. Acho que essa tal de felicidade tem a ver com a nossa capacidade de se adaptar em sobreviver a tudo de ruim. Fiquei num apartamento dormindo no chão, sem geladeira, com pias vazando e o chuveiro com defeito, cuidando do Yuki e dando assistência aos que ficaram na outra margem. Ainda assim, continuei nadando.

Pipo está comigo como pode. Ele vive pelo mundo e exatamente agora passará mais de dez dias em Brasília, onde sempre morou.

Para vocês terem ideia como as coisas estão comigo, comprei um armário baratinho na internet. Ontem ele chegou. Desmontado. Resolvi montar sozinha pensando em todo o empoderamento que recebi nessa vida (macho para quê?). Das 109 peças, dei a montagem por terminada deixando de usar mais da metade dos parafusos e de outras coisas que não sei o nome. Passei o dia inteiro montando esse móvel. As gavetas não correm, as portas não fecham e não entendi como colocam os puxadores. Nunca fiz nada tão torto na minha vida. Ele tem rodas mas, se empurrar, o móvel entorta mais ainda. Óbvio que chorei e encarei tudo como a metáfora do meu presente. E talvez seja. Está tudo imperfeito, tudo meio nhé. Mas o armário está no lugar certinho, feito para ele. Só uma questão de tempo para Pipo chegar e eu conseguir colocar algumas coisas dentro dele sem que ele venha ao chão. Estou falando do armário. Mas pode ser também do Pipo.

Enfim, estou morando no Largo do Machado. De meu apê, vejo as costas das estátua de José de Alencar sentado numa cadeira gigante.  Quando saio de casa, ouço a sua voz, ainda que a boca dele não esteja de frente para mim: “O sucesso nasce do querer, da determinação e persistência em se chegar a um objetivo. Mesmo não atingindo o alvo, quem busca e vence obstáculos, no mínimo fará coisas admiráveis”.

Estou longe de ter terminado a travessia e pode ser, pela quantidade de água que já bebi, que me afogue antes de terminar. Se me vir sorrindo por aí, saiba que é pelo risco que estou correndo, sem o qual nenhuma vida vale a pena.