O Novo Marco do Saneamento Básico

Para quem perdeu essa última bomba: o Senado Federal aprovou no dia 24 de junho de 2020 o Novo Marco do Saneamento Básico.

Fico aqui me perguntando, é sabido que as empresas privadas costumam adotar política de exclusão de populações mais pobres. Será que veremos algo diferente disso com esse “Novo Marco de saneamento básico”?

Muita gente não sabe, então resolvi me estender um pouco aqui já que esse é um assunto que atinge todas as pessoas. Saneamento básico pode ser entendido como o conjunto de medidas adotadas para garantir a saúde da população, evitando que as pessoas se contaminem e prejudiquem seu bem-estar físico e mental. Dessa maneira, podemos dividir o saneamento básico em 4 vertentes:

  1. Abastecimento de água
  2. Esgotamento sanitário
  3. Manejo das águas pluviais
  4. Resíduos sólidos

No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 [Lei nº. 11.445/2007] como o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais para essas quatro vertentes apontadas.

É importante dizer que a garantia de saneamento básico é uma responsabilidade do Estado, em todas as esferas de governo, mas, de acordo com a Lei, cabe aos prefeitos a responsabilidade dos serviços de saneamento básico nos municípios.

Para além disso, a Lei tem como pilares a integralidade, controle social e aplicação de tecnologias para a universalização do saneamento. Isso seria feito estabelecendo funções de gestão para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a regulação dos serviços, que devem ser usados com normas e padrões.

Com isso percebemos, de forma muito fácil, que a Lei garante saneamento para todos.

A pergunta é: por que, então, nossos governantes não colocam a lei em prática? Aguenta aí que respondemos já.

Vamos destrinchar esse “Novo Marco do Saneamento Básico” que, a meu ver, é mais um golpe que a população brasileira, principalmente os mais pobres, levou.

De maneira simplificada o Novo Marco afeta a titularidade dos municípios, privilegiando as empresas privadas. Para isso, o projeto dificulta a celebração de contratos de programa, que garantem que companhias estaduais prestem serviços para os municípios de seu estado. E coloca como obrigatório um chamamento público para verificar se há outros interessados, para além das empresas estatais, na concessão dos serviços. Ou seja, o Novo Marco acaba com a preferência de nossas estatais na concessão de serviços de saneamento básico e abre o setor para o capital privado.

Com a nova lei, uma das mudanças mais significativas é a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos. Passa a ser obrigatória a abertura de licitação, o que implementa a competição do acesso aos contratos e a inserção massiva de empresas privadas, em detrimento das empresas estatais nos estados, que atendem 70% da população.

No artigo 19 do que foi aprovado, os titulares de serviço público de saneamento básico deverão publicar seus planos de saneamento até dezembro de 2022. Mas, no parágrafo único seguinte diz que serão considerados os planos de saneamento básico os estudos que fundamentem a concessão ou privatização, desde que contenham os requisitos legais necessários.

Está nos documentos disponibilizados pelo governo que, a partir de 2023, esse plano de saneamento básico apresentado será REQUISITO para que municípios de todo o País possam ter acesso a recursos federais do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) para obras e ações do setor. 

Ou seja, se o requisito não for aprovado, não terá direito a nenhum investimento. Quem analisa esses planos de saneamento? O governo federal. O governo de Bolsonaro e Guedes.

SACOU?

Para terminar, outra modificação é que o governo federal coloca a Agência Nacional das Águas como reguladora do sistema de saneamento nos municípios para receber os recursos federais acabando, assim, com a autonomia de cada município.

Agora, vamos trazer o problema para o dia a dia. Aqui no Rio de Janeiro temos a CEDAE, uma empresa pública que, como já sabemos, gera muito lucro e presta serviços para diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, com base na lógica de subsídios cruzados.

O subsídio cruzado, para quem não sabe, é um dispositivo que possibilita que municípios com menos recursos tenham acesso aos serviços. 

Pela nova lei, a CEDAE ficaria inviabilizada de atuar em municípios mais pobres, que, por sua vez, não poderão mais firmar esses contratos de programa e terão que abrir licitação para contratar empresas para atuar no setor de saneamento básico.

Mas que empresa, ainda mais sendo privada, terá interesse em atuar em municípios pobres? Que empresa privada se dedicará a lugares em que a arrecadação de capital é baixa? A resposta todos nós já sabemos: nenhuma. E com isso, o povo que até um tempo atrás tinha garantido por lei o direito a saneamento básico fica desprotegido e em meio ao lado mais cruel do capitalismo: manda quem tem dinheiro.

Nos municípios mais privilegiados, por exemplo, certamente haverá uma otimização do contrato de programa. E o superávit que seria gerado na hipótese de contrato de programa tende a ser consumido nesse processo de muita concorrência na licitação. Os municípios deficitários não serão assim mais subsidiados.

Ou seja, a prestação de serviço de forma regionalizada será muito mais difícil, pois essa medida inviabiliza os subsídios cruzados e a população mais carente, certamente, ficará prejudicada. 

A pergunta é: como ficarão esses municípios que dependem dos subsídios cruzados? Em um momento em que os recursos para a saúde estão congelados por vinte anos, ainda temos que lidar com mais essa medida que vem, pelo tudo o que aqui foi considerado, no sentido de aumentar as doenças que um saneamento básico evitaria. É bem possível que jamais teremos investimento no saneamento básico justamente nos municípios cuja população mais precisa.

Não é preciso ir muito longe para perceber o quão excludente é esse tipo de decisão. Quando passamos pela privatização da energia foi preciso que Lula criasse o “Luz Para Todos”, um programa público com recursos públicos, para garantir a universalização da energia elétrica. Tudo isso porque a inciativa privada se negou a iluminar os rincões do país.

Outro exemplo é o estado do Tocantins. Após a privatização da Saneatins, a empresa devolveu ao estado cerca de 78 municípios que eram deficitários, e ficou apenas com o controle de 47 municípios que apresentavam níveis mais altos de rentabilidade.

A ideia de que o Novo Marco do Saneamento Básico é impulsionado pelo interesse do capital se reforça quando descobrimos quem é o relator do PL no senado. o senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), um dos políticos mais ricos do país e acionista da Coca-Cola no Brasil, que consome enorme quantidade de água. Essa gente não dá ponto sem nó e tenta montar uma narrativa complemente surreal para enganar o povo, nos convencer de que nossas estatais de saneamento básico não são capazes de resolver os problemas. O que eles não contam é que a raiz do problema não é a CEDAE ou qualquer outra empresa pública do setor de saneamento básico e sim os gestores, que fazem, de maneira proposital e criminosa uma péssima gestão para justificar a privatização, através do Novo Marco.

O resultado disso é o avanço de doenças derivadas da falta de saneamento, o que por sua vez poderá sobrecarregar a atenção primária do Sistema Único de Saúde, o SUS, fazendo com que os atendimentos aumentem para além da capacidade. E com isso o Brasil, mais uma vez, vai na contramão do que acontece no  mundo. A privatização dos serviços de saneamento e água tem se revelado desastrosa no mundo. Cidades como Buenos Aires, Berlim, Paris e Budapeste são algumas das mais de 300 ao redor do mundo que decidiram retomar o controle sobre seus serviços após os péssimos resultados com a privatização. De 2000 a 2017, foram 900 reestatizações!

Por fim, fica claro que a lei está alinhada com o projeto político neoliberal iniciado no governo Temer e reforçado no atual governo. Se hoje existem pessoas sem saneamento básico, vivendo nos esgotos e sem água potável é graças a direita capitalista que, no lugar de aplicar a Lei e fazer valer a Constituição, prefere abandonar a população mais pobre de forma criminosa, fingindo não ver o problema da falta de saneamento básico e dando como única solução a privatização das empresas estatais. Essa é a resposta para a pergunta que fizemos no início. Isso não resolverá nada, muito pelo contrário.

O saneamento básico em suas mais diversas dimensões como saúde, moradia, meio ambiente e alimentação, deve ser encarado como direito humano, direito de todo cidadão e por conta disso é dever do Estado, e não de empresas privadas, garanti-lo.

Está bem explicitado de que tudo foi feito para favorecer as empresas privadas. É possível acreditar que a iniciativa privada terá interesse de cuidar do saneamento básico dos municípios mais pobres, mesmo eles gerando menos lucros? Por que dificultar a universalização dos serviços? Como vamos garantir o acesso da população nas áreas rurais e das periferias urbanas a esse serviço essencial?

Que espécie de senadores que o Brasil elegeu que permitam que isso aconteça? Que compromisso tem com a nossa soberania? Por que Bolsonaro, esse mesmo que mostrou inúmeras vezes que não se preocupa com a vida das pessoas mais pobres, defende tanto essa privatização?

Água virou uma mercadoria só para quem pode pagar.

A aprovação dessa lei vai representar um aumento significativo da exclusão das pessoas em processo de vulnerabilização, muito maior do que se tem hoje. Há a possibilidade de eu estar errada? Não descarto. Pode ser que Paulo Guedes esteja preocupado com a população mais carente e, por isso, está feliz com esse “novo marco”? Não. Acreditar nisso seria como acreditar que as regiões Norte e Nordeste do Brasil são influenciadas pelo inverno do Hemisfério Norte ou acreditar nos títulos de mestre e doutor de quem anda com Bolsonaro.

Aos diabos com a falsa simetria

Ando sem paciência. Os tempos duros me transformaram em um ser mais árido. Me filiei ao PT no olho do furacão e, na ocasião, até o Lula pediu para eu pensar direito por conta das pedras e bombas (sim bombas, o Instituto Lula chegou a ser alvo de bombas) que estavam tacando. A minha filiação se deu por um ato político de não compactuar com o ataque que o PT sofria.

O tempo passou. Veio Bolsonaro, Queiroz, Covid-19…  E o PT continua sofrendo ataques. Lula estava certíssimo. Não há um dia que não sou xingada e cobrada por estar filiada ao PT.

Para começar, entendo que muitas pessoas tenham suas reservas com um dos maiores partidos de esquerda da América Latina. Claro que entendo.

Só acho curioso que essas mesmas pessoas que fazem cobranças ao PT são as mesmas que se calaram diante casos como o Cartel dos metrôs e trens de São Paulo e Distrito Federal, Mensalão tucano, Máfia do Carlinhos Cachoeira, Aeroporto de Cláudio, JBS, Furnas Centrais Elétricas, Caso Sivam, Caso da Pasta Rosa e muitos outros. Em todos estes casos, há, ao menos, um figurão do PSDB envolvido: Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Azeredo, Beto Richa, Marconi Perillo e Aloysio Nunes entre outros.

Por que será que quando os protagonistas são tucanos os inquéritos são paralisados, juízes arquivam as denúncias e ninguém que exige uma autocrítica do PT reclama?

Descobriu-se uma conta de milhões em nome de José Serra, do PSDB, na Suíça, mas Serra está aí, livre, leve e solto. Sobre Fernando Henrique, tem até um livro para expor o que foi a privataria tucana. Aécio Neves? Preciso de mais de uma hora de vídeo para falar de todas as suas falcatruas.

Mas respondam: quem foi condenado e preso por um apartamento de classe média no Guarujá, no qual nunca passou um dia sequer e cuja posse e propriedade nunca teve? Mais uma: sabendo de todos esses escândalos e muitos outros, qual foi o jornal que dedicou 20 minutos de sua edição à compra por dona Marisa de pedalinho de alumínio, no valor de quatro mil reais, para ela se divertir com os netos?

A mídia que apanha hoje de Bolsonaro foi a mesma que apoiou sem restrições manifestações fascistas, saudando-as como algo legítimo e democrático. Assim como muitos médicos que hoje estão sendo ridicularizados por Bolsonaro foram os mesmos que proferiram xingamentos aos médicos cubanos dizendo que eles não tinham currículo para atuar no Brasil. Vale observar que Cuba ficou mais de dez dias sem registro de mortes por Covid-19.

Não falo isso com felicidade e sim com didática. A colheita está sendo farta e bem dizia nossas avós que o que se planta… Fora isso, não quero correr o risco de esquecer nada e não vou permitir que nem mesmo Bolsonaro me faça passar pano para quem preparou muito bem o solo e regou com cuidado as sementes que cresceram e se transformaram nessa plantação danosa que todos nós estamos vendo: pessoas que invadem hospitais, quebram computadores, gritam com os médicos estimuladas por Bolsonaro, o mesmo que não acreditou nos dados fornecidos pelo Ibama, pelo INPE e pelo IBGE para citar apenas alguns exemplos, esse mesmo ser pede criminosamente para que seus seguidores fiscalizem hospitais. Pessoas que agridem jornalistas, coveiros, cientistas, artistas, terreiros…

Mas “ódio ao PT” tem outra origem. E querer culpar o PT por termos Bolsonaro como presidente tem, para além de covardia, ingenuidade ou burrice mesmo, muito oportunismo.

Ainda que o PT acabe, o ódio ao PT vai continuar existindo porque tem uma essência. Quem odeia o PT não tem esse sentimento pelos erros do PT e sim pelos seus acertos. Ainda que o PT não tivesse cometido nenhuma aliança que mais tarde veio a pagar por isso, o ódio ao PT continuaria existindo porque esse ódio é inato. Ele existe antes do PT surgir como partido. Esse ódio está no DNA da elite brasileira que não suporta o que o PT representa.

Esse pessoal que vestiu a camisa da CBF, foi para rua enforcar bonecos de Dilma e Lula e pregar a volta da ditadura militar não estava nem aí com a corrupção, pois a ditadura militar foi um dos regimes mais corruptos da história do Brasil.

Eles esbravejavam contra as políticas de distribuição de renda do PT, contra as cotas que levam jovens negros da periferia aos bancos das melhores universidades e contra a valorização das trabalhadoras domésticas. Quando eles gritavam que queriam o país de volta e o fim do PT era porque o Brasil estava menos desigual e as regalias e os status (como a de explorar trabalhadoras domésticas e ter filho em universidade) estavam ameaçados.

Observem as variáveis da equação que resultou em “Bolsonaro 2018”, a pessoa que mais representa a estupidez escravocrata, misógina, machista e racista e que nunca negou isso, pelo contrário, usou em sua campanha:

classes altas e médias do Brasil + candidatos da direita moderada = ?

Com só essas variáveis não conseguimos chegar ao resultado “Bolsonaro 2018”, concordam? Vamos colocar mais elementos nessa equação:

classes altas e médias do Brasil + candidatos da direita moderada + mídia oportunista + política perseguidora ao PT + judiciário partidarizado e corrupto…

Com essas outras que acrescentei ainda não conseguimos dar conta da desgraça em que estamos, dado que o sistema é complexo demais. Mas, sem elas, verdade seja dita, encarada e escancarada, nada disso se explica. Podemos colocar também o silêncio de Fernando Henrique e a fuga de Ciro Gomes nessa conta.

Cabe aqui um salve para a mídia que mesmo com Haddad no segundo turno falou em “uma decisão muito difícil”. Nem se fosse Bolsonaro e um sapato essa decisão seria difícil. Ah vá… Essa falsa simetria me irrita, ainda mais feita nos dias de hoje. Sinto-me ofendida quando acham que sou burra e desmemoriada.

Uma frente ampla contra o fascismo é um imperativo para todos os verdadeiros democratas. Mas não vamos nos esquecer que falávamos disso no golpe de 2016 e nas eleições de 2018. O ódio ao PT se explica pelo amor à política de Guedes e ao que Moro representa. Não se iludam: frentes na oposição que perdem mais tempo falando mal do PT do que tentando tirar Bolsonaro (beijo, Ciro!) pretendem continuar com a política de concentração de renda.

Ando sem paciência como disse. Mas, para o azar dos que vêm aqui me xingar, não me falta disposição para explicar.

Barcos nos quintais

Lá se vão não sei quantos dias que estamos vivendo em outro mundo. Muita coisa já passou pelas nossas cabeças e vivemos várias fases. Antes de começar a divagar, vale assinalar que nesse pandemônio há pessoas que estão trabalhando muito como, por exemplo, os profissionais de saúde e outras que ficam procurando o que fazer para não surtar dentro de casa. Pertenço à essa segunda categoria. Não me falta trabalho, não me entendam errado. A carência é de ter um oceano.

Por vezes, começo a preparar algumas aulas (sou professora de física); outras, pego-me orientando meu filho a acordar cedo para não perder a aula (ele, como muitos privilegiados nessa sociedade, está tendo um acompanhamento on-line com seus professores). Conversando com pessoas queridas, percebi muitas exaustas trabalhando em home office. O ponto é que antes havia sentido no que fazíamos. Ando me questionando se ainda há alguma logicidade em agir pensando num futuro como se nada houvesse se transformado radicalmente.

Trabalhar para ganhar dinheiro, juntar e passar férias em algum lugar diferente já é coisa que ninguém mais pensa. Não tem por que acumular dinheiro para além da nossa sobrevivência e para ajudar quem amamos e os mais vulneráveis nesses tempos esquisitos. Se tiver alguém aqui que já tem o básico estiver querendo muito mais do que isso mesmo testemunhando a fragilidade do ser humano nessa conjuntura, creio que essa pessoa não entendeu nada.

Minhas reflexões por aqui têm ido no sentido de imaginar uma nova forma social que substituirá essa ordem mundial liberal-capitalista.

Para além dessas divagações, tenho procurado formas de não enlouquecer. Não basta pensar nos meus privilégios pelo fato de ter comida e uma casa para que eu encontre um equilíbrio e consiga ficar bem. A felicidade ou algo que o valha não chega a mim por saber que existem pessoas em piores condições. Já passei pelas cinco fases das mudanças drásticas (no nosso caso, vivendo um isolamento por conta de uma pandemia em pleno Brasil com Bolsonaro como presidente): negação (não é possível que esse vírus chegou aqui neste momento), raiva (Por que não morre só quem não respeita esse isolamento?), negociação (se eu conseguir ler, vou me esquecer de toda essa desgraça), depressão (Não consigo me concentrar em nada e sou impotente diante dessa catástrofe) e aceitação (vamos ver o que podemos fazer para derrubar Bolsonaro e como iniciar uma revolução digital).

Amyr Klink que cruzou o Atlântico Sul a remo, sozinho, por um barco projetado para esse fim, assim que começou esse período de isolamento chegou a lembrar desse feito e pensou: “É só me meter no barco de novo e ficar lá sozinho como já fiquei por meses navegando no meio do oceano”. Pegou uma garrafa de vinho, boas comidinhas e se trancou na sua nau que estava em seu quintal. Ao contrário do que aconteceu no mar, Amyr quase enlouqueceu. Não aguentou ficar nem por uma hora ali dentro.

A viagem era uma escolha de um estilo de vida e não uma fuga dela.

Por que estou falando disso? Porque sou dessas pessoas anti sociais que a despeito de amar dar aula e de uma roda de samba, sempre tive um prazer fora do comum em ficar em casa lendo, escrevendo e cozinhando. As aglomerações das quais participei eram meu oceano. Agora o barco está no meu quintal e não vejo prazer em estar dentro dele de forma tão forçada. Quando ia a um restaurante perguntava sobre todos os sucos que a casa tinha. Sempre escolhia o de laranja, mas eu gostava de saber quantas opções estava desprezando. Se me dissessem que só vendiam suco de laranja, ficaria incomodada. Certamente perguntaria sobre as variedades dos refrigerantes para me sentir na liberdade da escolha, essa coisa tão suntuosa e luxuosa que é apontar o dedo e dizer “eu prefiro esse”.

A verdade dura é que não retomaremos de onde paramos. Teremos que aprender a viver em um mundo muito mais delicado, fraco, débil, suscetível e repleto de ameaças. Não conseguiremos manter o ritmo, os mesmos valores, a mesma postura, atitude e sonhos diante dessa nova vida. Toda grande mudança implica em dor, perda, crescimento e muita resiliência, prudência, ruminação e cautela.

Interessante pensar que se alguém nos falasse que o mundo iria dar essa bela parada, ninguém acreditaria. Como assim a gente que vive sempre correndo atrás de dinheiro para pagar nossos boletos e mais alguns excessos oferecidos por esse sistema, a gente que pega todo dia engarrafamento, trem e metrô lotados, a gente que estuda para passar de ano e fica apavorado se vai mal em alguma avaliação, a gente que trabalha pensando nas férias, na roupa nova, em trocar de carro… como assim tudo parar ao mesmo tempo não só no nosso país como em várias partes do mundo? Como assim? Não cogitávamos essa possibilidade porque em certa medida alguém nos fez acreditar que a economia não podia parar como se “economia” fosse um ser com vida e, portanto, pudesse vir a óbito.

Daí veio o vírus e fizeram com que acreditássemos que teríamos que fazer uma escolha entre nossa saúde (a (falta de) saúde de cada pessoa passa a ser a minha também) e o vigor, a vitalidade, a robustez da tal da economia. E vieram os comentaristas, os epidemiologistas, os economistas progressistas, os cientistas, os sociólogos, os filósofos e PT, o PSOL o PCdoB, Drauzio Varella e minha mãe dizendo que eu tinha que ficar em casa e que a economia nem gente é para começo de conversa. Depois de ouvir vários especialistas do mundo, percebi que de fato, a economia não é gente e sim um bicho, mais especificamente, um gato – esse animal fluido que se molda em vários recipientes e passa por buracos com diâmetro de uma azeitona. Ela se resolve.

O mundo não vai ficar parado para sempre. E já não está. O mais importante: o ser humano que para, nesse contexto, jamais volta de onde parou. Reaparece transformado, com outra cara, com outra roupa. E é sobre como vamos nos vestir que queria conversar agora.

Não acredito que o conhecimento nos torna mais sábios. Os livros de história não possuem a capacidade de evitar que erros grotescos continuem a acontecer. Seguimos com um mundo que possui em pleno século 21 pessoas escravizadas e outras comprando armas. É possível que saiamos dessa pandemia vendo mais injustiças e sofrimento. Mesmo com todas as informações que tivemos e das previsões certeiras que nos foram apresentadas, vários governos do mundo minimizaram a vida do ser humano para salvar algo que sequer existe sem nós – a tal da economia. Escrevo em um dia que temos aqui no Brasil aproximadamente 35 mil mortos e, ainda assim, com muitas cidades reabrindo o comércio. Não será por falta de conhecimento e nem de informação que essa taxa de letalidade vai disparar. Muito menos foi por falta de alerta que estamos sendo massacrados. Dava tempo de se preparar para passar com menos perdas humanas por essa catástrofe.

Pode ser que tudo piore. Que a pobreza aumente e que muito mais pessoas tenham a vida abreviada por abandono do Estado. Mas deixarei para ser pessimista em um momento melhor da nossa história. Prefiro acreditar que já havia muitas pessoas apontando que o sistema que tínhamos se encontrava em uma séria crise (vide as desigualdades sociais, o racismo, a violência urbana e a deterioração do meio ambiente) e que esta epidemia nos obriga a pensar em uma nova forma de ordem social pois ela só pode ser revertida por meio de uma abordagem coordenada e coletiva.

Ou teremos guerras civis ou seremos forçados a nos organizar através de vários tipos de cooperação internacional e entre nós mesmos para produzir e compartilhar alimentos, recursos financeiros, médicos e psicológicos. Não há como o isolamento terminar de forma pacífica sem solidariedade.

O Estado precisa ser muito mais ativo e proficiente garantindo o mínimo para a sobrevivência de todos os desempregados e passar a fazer coisas ignorando os mecanismos de mercado. Agora a verdade é que vivemos em um mundo viral e, portanto, faz-se urgente reconstruir, dolorosamente, um novo modo de vida.

Não importa se você é um neoliberal e tenha teorias conspiratórias sobre a instalação do comunismo no mundo pelo coronavírus. A sua interpretação social não faz com que a necessidade de sermos solidários para que sobrevivamos daqui para sempre desapareça.

A pandemia é um sistema complexo e impossível de se equacionar. As variáveis são infinitas passando, para citar somente algumas, pela internet, pelo direito, pela organização dos hospitais, pela logística do Estado, pelo clima, pelo capital, pelo vírus, pela bactéria, pelo Trump, pelo Bolsonaro, por George Floyd e Miguel.  Das combinações dessas variáveis, emergem algumas propriedades não previsíveis. A pandemia é uma mistura na qual se combinam processos naturais, econômicos e culturais. Ainda assim sabemos que a única forma de evitarmos a barbárie é estendendo a mão para quem está ao nosso lado.

Para superarmos essa catástrofe, governos precisam lançar medidas que protejam a população da extrema pobreza como a renda básica emergencial que deve ser permanente e universal. Mas percebam: ao fazer isso, o dinheiro cumpre outra função em nossa sociedade. Seu valor passa a ser pela disponibilização de recursos para que tudo, em certa medida, continue funcionando. Assim, o colapso econômico deixa de ser uma ameaça maior que o vírus. Olha aí uma nova ordem social aparecendo, gente.

Há relatos de que os soldados que haviam sido feridos na guerra foram os que conseguiram elaborar suas experiências traumáticas melhor que aqueles que voltavam ilesos – estes últimos ficaram muito mais perturbados depois que retornaram. Talvez, muitas pessoas que estão encarando essa realidade de frente e tendo algumas atitudes como, por exemplo, arrecadando dinheiro para ajudar pessoas que estão mais vulneráveis, confeccionando máscaras e quentinhas,  elaborando material de entretenimento para crianças, jovens e adultos ociosos em casa, fortalecendo as redes de ações solidárias, mobilizando-se em mídias sociais para a conscientização do avanço do fascismo, ouvindo os mais oprimidos e aprendendo com eles, estendendo os ombros de forma metafórica para quem chora e disponibilizando, literalmente, os ouvidos para quem precisa falar, debatendo qualquer coisa de forma exaustiva em reuniões e lives, talvez essas pessoas tenham algum benefício como efeito colateral e sejam menos capazes de esmorecer, render-se, sucumbir a paranoias. Talvez.

Só há um suco e nem de laranja ele é. Só há barcos nos quintais.

Será navegando em um cimento bebendo algo que não pedimos que a mudança que precisamos há de surgir.

Genesis 2020

No princípio, era só na China.

E a coisa era aparentemente sem entendimento e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo.

E disseram: fiquem em casa.

E vimos que ficar em casa era bom e uma luz, pois fazia a curva ser achatada e o sistema de saúde não entrar em colapso. E vimos a praga se alastrar pelo mundo.

Mas muitos chefes de nação se preocuparam com a economia.

E fez-se separação entre a luz e as trevas.

E daí chamamos o covid de pandemia; e vimos a importância do SUS e de um estado forte. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.

E disseram os bolsominions: temos a cloroquina, o Brasil não pode parar, isso é coisa de comunista. E morreram mais dez mil. E caiu um ministro da saúde. Moro denunciou Bolsonaro. E caiu o segundo ministro da saúde. Mais de 20 mil mortos. Houve uma expansão no meio das águas, e houve separação entre águas e águas.

E fizeram os bolsominions mais manifestações e assim a separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.

E chamaram eles a contaminação do vírus de fakenews, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo.

E disse Bolsonaro: E daí?.

E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.

E disseram eles: A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, ir passando a boiada, mudando todo o regramento.

E foi a tarde e a manhã, o dia quarto.

E disse ele: Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. É a vida.

E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.

E disse ele: O brasileiro tem de ser estudado, não pega nada. O cara pula em esgoto, sai, mergulha e não acontece nada.

E fez o governo Bolsonaro as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua vontade, e todo o réptil da terra conforme a sua necessidade; e viram eles que era rápido e fácil.

E disseram alguns governadores e prefeitos: Façamos o certo à nossa imagem, conforme a nossa semelhança: homem, macho, branco e hétero. E dominemos sobre os negros das favelas, e sobre as mulheres em casa, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o analfabeto sem instrução que se move sobre a terra.

E que o comércio seja reaberto e que não se fale sobre os hospitais lotados, que se mencione sempre a cloroquina, que se manipule o número de óbitos, que tudo se transforme numa conspiração comunista e que não seja paga a renda emergencial.

E viram eles tudo quanto tinha feito, e eis que matar os mais pobres, idosos e vulneráveis era muito fácil; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto.

E houve manifestações antifacistas com aglomeração pelas capitais e a gente não sabia se ficava triste ou regozijava-se. E foi domingo, o dia sétimo.