Sobre varandas

Morei por 45 anos na mesma rua em Madureira. Sempre em uma casa. Primeiro na casa de mamãe e de papai – que é uma casa virada para a rua – e, depois, em uma vila. Há cinco anos, moro no Catete em um apartamento alugado, de fundo e sem varanda.

Sinto falta de ver coisas. Tenho reclamado para Pipo que, no nosso próximo cantinho, tem que ter uma varanda com uma vista para seja lá o que for mas que não sejam somente essas janelas de outros apartamentos que sequer ficam abertas para eu me distrair com a vida alheia.

Pipo diz que é besteira. Para provar que está certíssimo, Pipo observa todos os dias pela janelinha da área de serviço as varandas – sempre vazias – do prédio ali distante. Outro dia, veio me dizer que viu, de fato, gente na varanda: uma pessoa varrendo, um pintor e um bolsonarista gritando algo segurando a bandeira do Brasil em pleno 7 de setembro. Ou seja: varanda só serve para dar trabalho. Ninguém usa. Diz Pipo em um esforço inútil para me deixar menos desolada. 

Sigo ávida para olhar alguma coisa e fico sonhando com um apartamento com varanda, ou, vá lá, com uma janela interessante. Veria do alto, o pátio de uma escola com as crianças pulando corda na hora do recreio, jogando amarelinha, brincando de pique. Observaria o jardim de um palácio com as maritacas fazendo algazarra por conta do casamento do João de Barro com a Maria de barro. Contemplaria atenta a assembleia dos gatos rebeldes em cima dos telhados. Testemunharia um assalto em uma avenida movimentada e gritaria lá de cima attenzione pickpocket. Assistiria um dramático pôr do Sol e meditaria sobre como nosso planeta gira rápido e não sentimos nada. Lembraria de Galileu todo dia. 

Lá de longe, miraria a chuva chegando como quem vem com uma grande novidade e o vento bagunçando as copas das palmeiras que passaram o dia se penteando. Presenciaria um resgate com um helicóptero de uma pessoa se afogando no mar e assim que o bombeiro a salvasse, eu enxergaria uma baleia dando um salto bem mais ali para o horizonte. 

Contaria a frequência com que os aviões passam por aquela rota ali no ar. Tentaria estimar a velocidade da aeronaves fazendo uma regra de três. Sou boa em conta e me distraio calculando como quem faz palavras cruzadas. Vibraria ao ver o show da esquadrilha da fumaça da varanda.

Plantaria flores em vasos bonitos e esperaria a visita dos beija-flores e das lagartas. Eles viriam aos montes e elas me chateariam um pouco. Avistaria uma colisão entre dois carros com ninguém se ferindo. Olharia os motoristas discutindo e, depois, eles se esbofeteando. Chamaria Yuki para ver e contemplaríamos blocos de Carnaval, crianças saltitantes voltando da escola, a ciclovia movimentada, pessoas conversando em libras, um circo sendo erguido, peteca histérica sendo arremessada entre amigos, partidas de futebol feminino e frescobol praticado por cadeirantes. 

Observaria a tormenta e a calmaria habitando a mesma tarde e as manhãs cheias de segredinhos. Veria uma senhora de mais ou menos setenta anos patinando todo dia pelas manhãs e uma mãe chegando da maternidade.

Diferenciaria o azul, o cinza, o branco e o vermelho quando olhasse e visse. 

Espiaria gente se exercitando e pessoas paradas como eu olhando o que tivesse para ser visto. Mas, meudeus, como teria coisas de lá de fora para entrar na minha cabeça. Teria todo dia elementos para uma crônica. Escrever é muito mais fácil para quem tem paisagens. O quanto perderia a literatura se todas as pessoas que escrevem vivessem em apartamentos sem varandas com vizinhos silenciosos e reservados como os meus?

Poderia ser que a minha vista fosse ofuscada pelos galhos de uma árvore bem alta. Poderia. Ainda assim, observaria as estações passando, ninhos sendo construídos, morcegos dormindo de cabeça para baixo, flores se abrindo e pegaria uma fruta madura esticando a mão. Veria uma fruta crescer e protegeria, com alguma gambiarra, minha manga dos passarinhos. Daria água para o moço amarrado por uma corda enquanto ele podasse os galhos mais fofoqueiros que estivessem invadindo a minha sala.

Para convencer Pipo de que meu desejo procede e que estou certa, resolvi registrar tudo o que estamos perdendo.

Não “lave as mãos”.

Nessa altura do campeonato, você já deve ter ouvido o caso da mulher que foi estuprada depois de ter sido deixada desacordada na calçada em frente a sua casa pelo motorista do aplicativo.

O tribunal da internet já apareceu e estou aqui lendo a quantidade de comentários dizendo que o “motorista não teve culpa”.

Muita gente que isenta de culpa e responsabilidade o motorista e o tal amigo (que colocou a moça até então acordada no carro) e o irmão (que dormiu porque estava medicado e não conseguiu ouvir a campainha) e o outro homem (que ajudou a tirar a moça do carro)… enfim, muita gente que fala que ninguém teve culpa nessa história – e tantas outras – certamente agiria da mesma forma.

“Já fiz a minha parte. Não é mais problema meu”.

Assim pensam.

É interessante a naturalidade com que as pessoas dizem que não têm culpa. Quando vemos crianças dormindo na rua, passamos direto porque “não temos culpa”. Quando vemos pessoas idosas com feridas abertas pelas calçadas, continuamos a andar porque não temos culpa. Quando vemos menores de idade trabalhando em sinais de trânsito debaixo do sol e de chuva, sequer abaixamos o vidro porque não temos culpa e, portanto, por essa lógica torta, também não temos a obrigação de ajudar, cuidar ou proteger.

Esse crime que poderia ter sido evitado em tantos momentos escancara o quanto esse mundo nos tornou perversos.

As primeiras perguntas que me faço diante dessa tragédia humana são:

O que custaria acompanhar essa mulher até um lugar seguro? Tempo? Dinheiro? Quanto? Quanto vale uma vida? O fato de nascermos em um mundo tão torto nos exime da responsabilidade de tentar consertá-lo? Não ter responsabilidade legal sobre alguém que está vulnerável é motivo suficiente para que eu não precise fazer nada para protegê-lo?

Abandonar uma mulher inconsciente na calçada de um país que tem quase um milhão de casos de estupro por ano, dois estupros por minuto, enfim, deixar uma moça desacordada na porta de casa é o bastante para dar uma corrida por encerrada?

O motorista lavou as mãos tal como Poncio Pilatos fez ao libertar o bandido Barrabás e entregar Cristo inocente para ser crucificado. Pilatos entrou para a história como o omisso covarde que ao ser colocado de frente a uma decisão importante faz o que é mais fácil ainda que sua atitude seja sem ética, sem moral e sem escrúpulos. O motorista lavou as mãos e há muitos homens as enxugando.

A moça, como tantas de nós, foi vista por quem por ali passou como algo público. Por estar na rua, muitos acham que uma mulher é de todos, assim como a calçada que pisam. A imagem da moça sendo carregada como se fosse um saco de batatas dói porque somos nós ali. Nós que até mesmo dentro de um hospital, lugar de cuidado e acolhimento, somos estupradas.

No conforto do sofá, estão dizendo que o motorista não teve culpa.

Sinto dizer mas não há ninguém blindado, imune ou isolado do mal que existe nessa bagaça. Se não contribuirmos para que tanta maldade e injustiça diminuam, seremos, de um jeito ou de outro, atingidos por elas.

Dizem que as desigualdades e injustiças que existem por aí “não são minha culpa” porque “quando nasci o mundo já era assim”. Ou seja, “não posso fazer nada”.

Claro que pode. Toda pessoa tem o potencial de mudar o mundo. Ao proteger um ser humano, o universo melhora como um todo. E nem é tão difícil assim alterar o infinito…

Que o estuprador seja preso e que o restante dos homens pare de lavar as mãos diante de escolhas como essas.

Sobre ser uma surda que ouve

Muita gente me perguntando sobre meus aparelhos auditivos e sobre a minha deficiência. Sou uma surda que ouve com próteses. Eu não nasci assim. Senti que estava perdendo audição há muito tempo com uns 25 anos. Protelei fazer exames e usar próteses porque né. Não é fácil encarar isso de frente. Eu tive que enfrentar quando estava no doutorado. Fiquei com medo de não entender as perguntas na banca no dia da defesa da tese e foi ali que decidi fazer as primeiras próteses auditivas.

Como professora, enfrentei em sala de aula muitos problemas e sufocos. Não entendia as perguntas dos alunos direito ou entendia tudo errado e respondia outra coisa que fazia a turma todas às vezes rir de mim. Teve responsável reclamando na direção porque ei não dava atenção à filha que sempre me chamava, sendo que, na verdade, eu não a ouvia me chamando. Ou seja, já estava mais do que na hora de eu fazer meus aparelhos.

Antes da gente fazer os aparelhos, temos que fazer antes a audiometria. E isso para mim foi muito tenso. Percebi ali que a perda já era bem acentuada. Com a audiometria em mãos, fui buscar as lojas que vendem aparelhos auditivos.

Minhas lembranças são péssimas. Foi com um mercado perverso que tive que lidar. Há alguns lugares que te tratam com um mero consumidor e não tem nenhum tato para lidar com tantos sentimentos que temos nesse momento tão vulnerável e asssustador. Estava tensa, triste, com vergonha e sem dinheiro. E os aparelhos são extremamente caros. O SUS fornece de graça, mas há uma fila, um tempo de espera e não podemos escolher o modelo que queremos. 

Lembro que estava triste a beça e fiquei muito pior quando fui fazer o orçamento das próteses.

Até que parei em um lugar que não me tratou como uma carteira de dinheiro e tive um atendimento humanizado com todo carinho possível.

Quando a fono colocou, enfim, pela primeira vez, os meus primeiros aparelhos que eram uns de enfiar no ouvido e não ficar nada do lado de fora, eu chorei de soluçar. Nada a ver com alegria. Chorei de desespero. O som estava longe de ser o do ouvido natural. Tudo que ouvia parecia sair de um rádio de pilha. Eu entendi ali que nunca mais ouviria bem e que isso seria um grande problema que teria que enfrentar diariamente.

Lembro que a fono pediu para eu andar na rua e quando passou um caminhão de lixo eu me abaixei e cobri a cabeça. A sensação era que um helicóptero estava caindo perto de mim.

Mais um detalhe: ouvimos em infinitas frequências. Mas quando perdemos, perdemos em algumas específicas que são detectadas pela audiometria. Porém, os aparelhos auditivos têm frequências limitadas. No meu caso, eu perdi muito mais em alguns agudos do que nos graves. Mas o meu primeiro aparelho amplificada tudo. Por isso, o caminhão que passou na rua (e todos os outros que passaram depois quando estava com os aparelhos) sempre me causaram um desconforto nível socorro.

Mais um detalhe importante para quem me ouviu até aqui e quer entender mais sobre essa deficiência: Ouvir é subjetivo. Não é uma ciência exata. Muitas das vezes, por exemplo, estamos em um ambiente super barulhento e não estamos ouvindo nada porque estamos concentrados em alguma coisa. Quero dizer com isso que explicar o que sentimos não é simples e nem sempre possível. Entre o que eu sinto, o que ouço e o que consigo decifrar sobre tudo isso para uma fono e o que ela entende do que eu falei, há um abismo. Por isso, a regulagem do aparelho é algo muito difícil de acontecer. É comum, para quem os coloca pela primeira vez e sentir tanta coisa ruim, ouvir da fono: é assim mesmo. Você precisa se acostumar. Requer um tempo de adaptação. É normal.

Mesmo tudo dando muito certo na comunicação entre a pessoa surda e a fono, usar aparelhos é como andar com um sapato apertado. Porém, se essa comunicação não tiver sucesso (o que acontece inúmeras vezes), é como se houvesse, nesses sapatos apertados, algumas pedras no dedo mindinho. 

Entendem o inferno na terra? Então… por isso, é comum muitas pessoas passarem por todo esse processo, gastarem muito dinheiro e, no final, preferir ficar sem eles, o que foi o meu caso na época. Eu só os usava em situações em que precisava muito ouvir.  Desenvolvi uma boa leitura labial e, muitas vezes, fingia que entendia o que a pessoa estava falando.

Os aparelhos têm uma vida útil muito pequena. Mais essa. Igual celular. Uns três anos e começa a sinalizar que vai pifar de vez.

Minhas segundas próteses foram melhores e tive o privilégio de ter a ajuda de um músico na audiometria e quando fui ajustá-los com a fonoaudióloga. A presença do David fez toda a diferença porque ele conseguia traduzir e decifrar coisas que eu sozinha teria muita dificuldade. E fez perguntas para a fono que eu não faria. Enfim, foi melhor mas ainda assim, muito ruim.

Fiz campanha com esses aparelhos e quem ficou comigo percebia o quanto eu sofri e o quanto foi difícil. Aqui cabe mais um detalhe importante dessa deficiência. Nossos ouvidos são como nossos olhos em certa medida. Quando entramos em um ambiente muito claro, nossa pupila diminui de tamanho para diminuir a entrada de luz. Quando entramos em um quarto escuro, nossas pupilas se dilatam. Isso é feito de forma involuntária. O mesmo acontece com os ouvidos bons: em lugares de muito barulho, há um mecanismo natural para que a gente não enlouqueça. Os ouvidos formam uma barreira natural. Mas quem tem ouvidos ruins como os meus, perdem essa capacidade. Então, lugar barulhento para mim é algo que nem consigo explicar de tão horrível que é. Daí, mesmo tirando minhas próteses, sofro. É como se estivesse indo para um lugar com muito Sol com as pupilas dilatadas. Dói.

Na campanha, quando entrava em um ambiente com muito ruído, tirava os aparelhos e mesmo assim era um problema que tinha que lidar para além de tantas outras emoções.

Mais um detalhe: as pilhas acabam, são caras e duram pouco. Às vezes, tinha que ir para um cantinho e trocá-las porque elas acabam sempre quando mais preciso ouvir. Já deixei de entender duas peças de teatro e um filme nacional porque as pilhas acabaram.

Em sala de aula, sempre foi um tal de tira e bota aparelho porque há um momento em que todo mundo fala ao mesmo tempo e o alto ruído de fundo me deixava desnorteada.

Se chove, tenho que tirar os aparelhos e entro em desespero se tiver que ouvir. Eles não costumam ser a prova d’água.

Eu decidi não esconder tudo isso desde o início. Estudando o assunto descobri que essa deficiência não é “coisa de velho”. Há muitas pessoas novas que precisam usar aparelhos e não os usam porque ou são muito caros ou porque sentem vergonha ou porque é extremamente desconfortável. Essa deficiência é onde mais encontramos pessoas deprimidas porque é fácil escondê-la ou porque muitas pessoas surdas optam por se isolarem. É comum quem convive com a gente se irritar quando pedimos para repetir algo que foi falado. Essa deficiência irrita quem lida com as pessoas surdas. Então, não é simples lidar com piadas ou com alguém impaciente com algo que está além da minha vontade resolver. Para muitos homens surdos é ainda mais difícil porque muitos são carecas e o cabelo ajuda a esconder bem as próteses. Quando eu fazia rabo de cavalo, eu sempre os tirava. Hoje, é algo que enfrento. Mesmo com cabelo preso e as próteses visíveis, ok para mim. Mas para chegar até aqui foi um longo processo.

Durante a campanha, meus aparelhos deram muito problema porque a vida útil deles estava no fim. Teve um dia na UERJ que entrei em desespero. Eles pifaram e era o dia que o Lula ia estar ali. Naquela confusão de gente, tive que ligar para o técnico que foi lá resolver para mim. Tenso. Mega tenso. 

Já eleita, resolvi fazer novas próteses e aqui começa um novo capítulo desta história. Os aparelhos deram uma boa modernizada de uns tempos para cá desde que comecei a usá-los. Fiz nova audiometria, vi que estou mais surda ainda e com a audiometria fui escolher minhas novas próteses sabendo que ia gastar muito dinheiro e seguir infeliz. Quando a fono colocou em mim um modelo mais moderno, eu não acreditei. Ela abriu a janela (é uma loja que fica em uma rua bem movimentada em Copacabana) e eu chorei. Não foi insuportável o ruído de fundo na rua. Perguntei para ela se os aparelhos estavam ligados e ela pediu para eu tirá-los. Tirei e fez-se o silêncio que ouço quando estou sem as próteses. Coloquei de novo e tudo estava suportável e muito próximo do ouvido natural – ainda que longe se é que vocês me entendem. Quero dizer, que ouvia sem sofrer e que jamais pensava que isso aconteceria de novo. Chorei mas dessa vez de felicidade. E chorei de novo quando ela me disse o preço.

Quase dez mil por cada aparelho e esses nem são os melhores, ok?

Voltei de metrô. Lembro que liguei para minha mãe chorando porque consegui andar de metrô sem enlouquecer com tanto barulho.

Como sei que muitas pessoas têm essa deficiência e que não têm as condições de comprar algo nessa qualidade, eu sofro e, como deputada, estou atuando nisso já que não temos sequer desconto no imposto de renda. Não temos desconto em quase nada por ser surda. Muita gente sequer tem as informações necessárias sobre essa deficiência.

Essa é a minha história. As deficiências são muitas e todas elas têm suas especifidades. O que funciona para mim, para outra pessoa, pode não funcionar. Em tempo, implante coclear que sempre me indicam quando falam sobre isso é uma cirurgia de alta complexidade que só é indicado para quem não se adapta às próteses. E tem um risco que, no meu caso, não preciso correr.

Resolvi contar tudo isso porque muita gente se mostrou curiosa por um outro texto e vídeo que fiz contando que tive dificuldades de carregar os aparelhos em uma viagem e entrei em desespero. Essas próteses não são à pilha e sim carregáveis como fazemos com o celular. Tenho uma base, coloco eles ali toda noite e quando saio de casa, coloco os aparelhos. Ah sim, já tive que voltar para casa várias vezes correndo porque me esqueci de colocá-las e só percebi quando alguém veio falar comigo.

Estou vivendo de forma muito mais confortável e o sonho é que todas as pessoas que tenham essa deficiência tenham esse conforto. Não é fácil viver em um mundo não inclusivo e tão capitalista. Existe a solução, faltam as condições de chegar até ela.

Não quero que ninguém sinta pena de mim com esse relato. Não o fiz para isso. Isso para mim tem dois propósitos: (1) trazer sensibilidade para essa deficiência e, por tabela, para todas as outras e (2) que eu fale cada vez com mais naturalidade de algo que já me envergonhou muito. 

Consegui mais uma vez. Está tudo bem, mas é preciso um grande esforço sempre para que fique tudo bem.

Obrigada por me lerem até aqui.

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Já apareceu gente aqui querendo me corrigir dizendo que “surdo é quem não ouve nada” e tem Libras como a “língua natural”. 

Essa leitura está errada em dois pontos: 

Primeiro: considerar que todas (ou a maioria) das pessoas surdas sabem Libras. Conforme dados do IBGE, a maioria das pessoas surdas no Brasil não usa língua de sinais e isso é um problema que precisamos nos esforçar para entender e resolver. 

Segundo: uma pessoa surda pode ouvir com implante coclear, com aparelhos auditivos (o que é o meu caso) ou com próteses implantáveis. Segundo a OMS, temos 1,5 bilhão de pessoas com algum grau de surdez no mundo. E apenas 30 milhões têm surdez profunda. 

Pessoas surdas podem ser as que não ouvem nada e podem ser pessoas que ouvem com a audição que lhe resta. 

Há vááááários graus de deficiência auditiva. A maioria dos casos se beneficia do uso de aparelhos auditivos. 

Estamos em 2023, meu povo, então, vamos atualizar os conceitos:

Há pessoas surdas que nunca ouviram e que falam perfeitamente (Beijo, Armando Nembri!), que ouvem com ajuda de tecnologia, que ouvem e dominam a língua de sinais, há surdos que não ouvem nada e que não utilizam libras para se comunicar, há pessoas surdas que não sabem português (a maioria, por sinal – Lembre de quando você foi alfabetizado e o quanto os fonemas foram importantes nesse processo. Para alfabetizar uma pessoa que não ouve som nenhum, são necessárias outras metodologias que poucas pessoas dominam), e sim, há pessoas com surdez severa e que só se comunicam com a língua de sinais e há outros casos que, certamente, não citei aqui.

Sou uma pessoa surda que ouve e não há erro nenhum em falar assim. Há, no lugar, uma atualização dos conceitos. Eu não seria irresponsável de falar desse jeito sem antes ter estudado o assunto e conversado com a própria comunidade surda sobre como devo me definir.

Sobre submarinos e Titanics

A morte de cinco tripulantes da expedição turística para visitar os destroços do Titanic foi manchete dos jornais no mundo. Houve memes, piadas e muita perplexidade por ter sido uma escolha passar por essa experiência que seria desconfortável e com alto grau de periculosidade.

Amante da Ciência que sou, desacredito em “escolhas”. Vou fundamentar meu argumento para refletir sobre a repercussão de tudo isso e do quão incompreensível essa dita escolha desses cinco homens bilionários foi para nós.

Você já deve ter ouvido por aí que vivemos de acordo com as nossas escolhas ou que somos resultado daquilo que escolhemos. Há várias frases como essas compartilhadas ou ditas diariamente por alguém. A despeito de isso parecer algo óbvio e até sábio, esse papo motivacional utilizado por muitos “coaches”, a meu ver, pode ser uma grande ilusão. Há grandes possibilidades de que as “nossas escolhas” não sejam exatamente nossas, mesmo quando temos total certeza de que as tenhamos tomado de forma consciente.

Nós, como seres humanos, gostamos muito dessa “ideia de liberdade”. Mas será que nós somos completamente autônomos como pensamos ser? No cotidiano, temos a faculdade de realizar ações que, em tese, poderíamos não realizar caso (não) quiséssemos. 

O que aponto aqui é que esta noção é muito mais complexa quanto parece e que pode ser tão real quanto uma miragem no deserto. 

Será que temos realmente a faculdade plena de escolher entre esse ou aquele caminho? Estamos inteiramente livres para escolher entre fazer ou não fazer certas coisas? 

Ouvir que somos livres para escolher isso ou aquilo sempre me incomodou profundamente porque jamais me senti livre e escolhendo nada. Nem profissão, nem marido, nem ter ou não filhos, nem o tema da minha tese, nem a separação, nem um novo amor, nem o que sinto… Nada disso foi uma alternativa. Como não?, diria você. Vem comigo que no caminho eu te explico.

Para começar, se acreditamos na ciência, que o universo é previsível e segue um conjunto determinado de regras, ou seja, que cada coisa no universo que temos observado até agora segue algumas diretrizes específicas e nada está isento da influência de forças externas, então, por que nós – os produtos do universo – estaríamos isentos de influências do ambiente? Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito?

Agora vamos mais fundo – assim como um submarino projetado para viajar com segurança.

Falar de “ciência” sem sequer aprofundarmos seus fundamentos já levanta muitas dúvidas: será que a razão pela qual a intuição nos diz que temos um livre-arbítrio não seria porque a nossa mente altamente limitada não consegue identificar todos os fatores que afetam a nossa “escolha”?

Diria você: mas eu me vejo escolhendo, por exemplo, em tomar café com açúcar ou com adoçante. 

Será? 

Vejamos: seja lá qual for a sua “escolha”, considere que ela possa ter acontecido porque a mídia tem mostrado demasiadamente o mal que um ou outro produto faz, que seu paladar não aceita ou um ou outro, que o seu médico aconselhou a diminuir o consumo de um dos dois e por aí vai. Até a mais simples das escolhas conta com fatores que não podemos saber ao certo quais são.

Se acreditamos que há um inconsciente como apontam pessoas que lidam, por exemplo, com a psicologia,  veremos que não agimos de forma livre, mas sim conforme nossos impulsos e desejos inconscientes – como se fossemos reféns de nós mesmos.  

Desta forma, acreditamos estar agindo a todo instante conforme queremos e escolhemos sem notar que, na verdade, estamos satisfazendo desejos que se encontram em nosso inconsciente. 

Vejamos como isso faz sentido: o que nos leva a consumir certos produtos, a trabalhar em certas atividades e a nos relacionar com determinadas pessoas? O quanto condicionamos nossos atos aos resultados que estes trarão? O quanto estes resultados que almejamos são construídos pelo meio social em que vivemos? 

Dito de uma outra forma: se um objeto lançado por nós tivesse consciência do seu movimento não poderia ele se julgar livre para perseverar nesse movimento na medida em que ignorasse por completo o impulso que demos a ele? Em que medida aquele que crê ser livre não é tal e qual uma pedra lançada ao vento que ignora a força que a impeliu?

Se acompanharmos os estudos feitos pela neurociência, veremos que atribuir à mente humana alguma liberdade de decisão não condicionada por processos inconscientes parece cada vez mais difícil. Para muitos neurocientistas, o nosso cérebro é um órgão do corpo, como tantos outros, igualmente formado por tecidos e células especializadas, que funcionam conforme nossa constituição bioquímica, reagindo a estímulos internos e externos de formas complexas, porém, de certa maneira, previsíveis. A mente é um troço que emerge da atividade do cérebro em conformidade com as leis da física e da química, o que implica em dizer que somos, em certa medida, o que a química de nossos cérebros faz de nós. Cada emoção pode ser associada a processos neurológicos que, por sua vez, podem ser reduzidos a processos bioquímicos que, em última instância, nós não temos controle.

Particularmente, não acho que a mente possa se reduzir aos processos que ocorrem no cérebro. Para mim, a equação seria “cérebro + alguma coisa = mente”, sendo que essa “alguma coisa” pode ser entendido como algo metafísico que traria imprevisibilidade para as decisões do indivíduo – quebrando, desta forma, o determinismo do mundo físico. 

Ainda assim, isso não implica a existência do livre arbítrio. 

Sentir nojo de insetos não me parece uma escolha. Sentir-me mal em um determinado ambiente não me parece uma escolha. Sentir-me atraída por alguém não me parece uma escolha. Sentir saudade não me parece uma escolha. Sentir-me sozinha não me parece uma escolha. Sentir-me triste não me parece uma escolha. Sentir seja lá o que for não me parece uma escolha.

Afinal, “o que, então, determina a minha vontade?”, perguntaria você. Não sei se há uma resposta para isso, mas se você acha que é você mesmo ou nada, perceba o quanto isso é incoerente: se é você que determina a vontade, isso significa pressupor um “você” de certa natureza que determina necessariamente a vontade. Dizer que “você” determinou sua vontade só faz algum sentido na defesa do livre arbítrio se “você” não é determinado por nada. Porém, o que seria algo que não é determinado por nada? 

Complicado quando pensamos seriamente a respeito, não?

Antes de eu continuar, saiba que a filosofia que fez isso com a minha mente e como disse o grande mestre: uma mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao tamanho normal.

Ando assim: reflexiva quando vejo um submarino com cinco homens implodir e muita gente rir por eles terem desprezado o risco. Sem fazer juízo de valor nenhum sobre piadas que, confesso, ri de algumas como “no fundo, todos os bilionários são legais”, o que proponho aqui é pensar sobre a nossa essência.

Pergunto-lhe: uma célula individual tem o livre-arbítrio? E uma bactéria, teria? Ou uma flor? E uma girafa, um cachorro ou um leão, por exemplo – será que eles têm livre-arbítrio? Quando as tartaruguinhas saem dos ovos e correm para o mar, elas teriam como opção ficar na areia?

Em que ponto da nossa história essa tão contraditória e ilusória ideia de liberdade para escolher apareceu em nós?

Uma coisa é fato: essa ideia de escolha e livre arbítrio é o fundamento da punição dos pecadores para algumas religiões. 

Que sentido teria mandar para o inferno pessoas cujos pecados não tivessem sido cometidos por vontade própria? Ou pior, sem agentes de vontade livre, a culpa pelo mal no mundo recairia sobre o único ser livre que sobraria: Deus. O fato de a ideia da escolha vir associada a outra de julgamento não é por acaso: a última precisa da existência da primeira. Isso é algo simples de compreender, afinal, quais seriam as consequências para a sociedade, então, se descobríssemos que não existe livre arbítrio? Como a doutrina da condenação e salvação se sustentaria?

Grande parte da infelicidade, da culpa, do arrependimento e da angústia que sentimos é porque nos fazem acreditar que somos livres e que devemos pagar pelas más escolhas. No caso das religiões abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo), o impacto da ideia de que não somos livres para escolher seria fatal para essas doutrinas.

Muito complicado, eu sei, acreditar que não escolhemos nada e que não somos culpados por nada. Como lidaremos com a responsabilidade e autonomia pessoal na Moral e no Direito? Como algumas religiões se legitimariam? Como educar nossos filhos sobre o certo e o errado?

Lá pelos idos de 2008, em um estudo publicado na Nature com o título Determinantes Inconscientes de Decisões Livres no Cérebro Humano, ficou provado cientificamente que a decisão começa a ser formada no cérebro até 10 segundos antes dele tomar consciência disso. Ou seja, você se prepara inconscientemente para fazer algo bem antes de sequer se dar conta que está fazendo isso – e bem antes de realizar o movimento de fato. 

Outros estudos, dessa vez focados na atividade de cada neurônio em vez do cérebro como um todo, mostraram que as células neurais ficavam ativas antes da decisão de apertar um botão, por exemplo.

Vocês podem argumentar que o livre arbítrio é muito mais profundo do que os resultados que essas pesquisas nos induzem a pensar. Em vez de mexer dedos e apertar botões, seria necessária a análise de atividades mais complexas. Ainda assim, mesmo essas tarefas mais abstratas e intelectuais do que propriamente um movimento muscular não são totalmente espontâneas – elas dependem de coisas como carga genética, experiência, traumas de infância etc.

Talvez você acredite tanto nessa ideia de livre-arbítrio e da existência da escolha porque ignora as causas do seu querer. E veja que interessante e paradoxal: quanto mais imaginamos um livre-arbítrio, mais precisamos de regras que limitem, justifiquem e expliquem a liberdade.

Somos o que somos porque temos uma essência que não controlamos. Talvez, se houver liberdade de fato, esta deva ser compreendida como a proximidade máxima do conhecimento dessa nossa essência (que é ímpar para cada ser) do que nos torna tristes ou mais felizes. 

Quem acredita que exista liberdade de escolha fica por muito tempo pensando que tudo poderia ter sido diferente e se culpando por caminhos (que não existem de fato) que poderiam ter tomado. O livre-arbítrio e a culpa não sobrevivem isoladamente.

Mas, então, perguntaria você: “se eu não posso escolher, como posso ser julgado?”.

A ideia de ‘escolha’ leva diretamente a outras como de julgamento e moral que, por sua vez, não são objetivas e nem universais. Vide as leis diferentes para cada país.

Mas, continuaria você: “matar, por exemplo, seria justificável?”.

Se a escolha for uma ilusão como parece ser quando pensamos sobre ela, quem mata, nessa esteira, não teve outra alternativa. Isso, porém,  não quer dizer que um assassino não deva ser condenado, preso e reabilitado. 

Se pensarmos no ser em si, no que nos movimenta, no que nos engrandece e nos diminui e dispensar (por um segundo que seja) um critério exterior e moral para nos julgar, nossa cabeça dá uma bugada, como dizem por aí.

Nossa moral nos sustenta, mas limita nosso raciocínio.

Quando desconsideramos – para efeito de reflexão – uma ordem moral do mundo, abrimos as portas para os devires: permitimo-nos tornar o que somos e a aceitar o outro como ele é. Sem julgamentos, mas com atitudes necessárias para um bom funcionamento da sociedade e segurança de todas as pessoas que a constituem.

É um exercício difícil, mas interessante quando conseguimos ou tentamos fazer.

O fato de que a liberdade da vontade não possa ser coerentemente pensada através de conceitos (uma vez que, em última instância sempre caímos ou no determinismo ou no acaso) não significa que sua possibilidade esteja negada. E é isso que acontece. É dado como certo no mundo que somos livres para escolher. Ou seja, acreditamos piamente que escolhemos os caminhos que percorremos.

Porém, observem: a própria metáfora da bifurcação e de caminhos escolhidos é uma invenção que nos gera culpa e medo. Não há caminhos físicos e reais em um mundo complexo e abstrato.

Se agimos mal em uma situação é pelo fato de ter feito uma coisa de uma determinada maneira e ter tido um resultado ruim para nós ou para alguém.  Neste caso, é bom tentarmos mudar, digamos, a química do nosso corpo ou o meu modo de pensarmos para que sejamos capazes de agir de uma forma diferente quando submetidos a uma situação similar. Não se muda o depois se o antes for sempre o mesmo.

Quando falamos em reabilitação de pessoas que estão encarceradas por ter cometido algum crime, estamos falando disso. Se uma pessoa foi capaz de matar um outro ser humano e foi privada de sua liberdade, ela será solta depois de alguns anos e voltará para a sociedade. Se não alterarmos os valores, a forma de ver a vida e o outro, podemos ter reincidência no crime. 

Ou seja, as consequências de acreditar que não temos escolhas, de reconhecer que uma mente consciente nem sempre vai originar  pensamentos, intenções e ações não muda o fato de que pensamentos, intenções e ações de todos os tipos existem.

Voltando para os riscos que algumas pessoas passam por “achar divertido” – como alguém que anda, por exemplo, em uma corda bamba sem equipamento de proteção para passar de um prédio para outro, … enfim, sobre pessoas que se arriscam, pesquisadores dos Estados Unidos em um estudo divulgado na revista Nature Communications mostraram que a capacidade de correr mais riscos está ligada a uma região específica do cérebro, o córtex parietal superior direito. Com isso, fica explicado por que, em algumas fases da vida ou determinadas pessoas arriscam muito mais do que outras.

Jovens têm, no geral, um volume de matéria cinzenta do córtex parietal posterior direito maior do que as pessoas idosas e isso pode ser uma explicação porque um parque de diversões, por exemplo, não é visto como diversão para pessoas mais velhas (de uma forma geral).

Há vários tipos de riscos para além de uma viagem para ver os destroços do Titanic em um submarino reprovado por engenheiros. Aplicações financeiras, saltar de paraquedas, andar de bicicleta, caminhar no meio do mato, divorciar-se, fazer uma viagem para um lugar inóspito, mergulhar com tubarões, subir o Everest… falando nele, lembrei-me que o montanhista inglês George Mallory, cansado de responder à mesma pergunta feita por milhões de vezes em sua busca por patrocínio “por que você quer escalar o Everest?”,  ele passou a responder “porque está lá”.

Quem se dispõe a subir uma montanha, fazer uma viagem apertada em um submarino, cruzar oceanos em um veleiro ou num barco a remo, meditar no Tibet, enfim, há muita gente que se dispõe a abrir mão dos confortos da vida e da convivência com familiares e amigos, em troca de privações, sofrimentos físicos e exposição a riscos supostamente desnecessários. Nós, mortais com pouca coragem ou com pouca massa cinzenta do córtex parietal direito, ficamos olhando tudo isso e nos perguntando: Para que isso, gente? Custa ficar em casa vendo um filme?

E uma resposta lacônica e sincera de quem foi será: porque estava lá. 

Vivenciamos o paradoxo, o absurdo, ou seja, aquilo que não é compreendido por outras pessoas devido à singularidade da experiência e o quão distante é, para nós, a possibilidade de fazer algo similar. Por outro lado, nós mesmos fazemos coisas que se confrontados sobre a finalidade daquilo, não sabemos responder. O Titanic de cada pessoa está em algum lugar.

Quando algo dá muito errado com quem se arrisca, quem passa a se conhecer melhor somos nós que sobrevivemos ao nos permitirmos conversar sobre tudo isso. 

E quando algo dá muito certo, também. Por exemplo, se um amigo faz uma aplicação de grande risco e consegue um lucro exorbitante, isso não vai passar indiferente para você. 

Qualquer experiência dessa natureza com outras pessoas, trazemos, naturalmente, para nosso umbigo. 

Seres humanos que correm risco fazem isso por ego, para se destacar no meio de uma multidão ou em busca de autoconhecimento. 

E todos nós, em alguma medida, temos o nosso Everest ou um Titanic. Comemos, por exemplo, açúcar estando na iminência de uma diabetes porque o açúcar simplesmente “está lá”. Fumamos porque o cigarro existe. Andamos de tirolesa porque ela foi montada. Há quem já tenha morrido estudando de perto os vulcões porque eles estavam lá. Mudamos de profissão já adultos e com a vida estabilizada porque está tudo por aí. 

Termino citando Riobaldo, personagem do “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Ele falou em diversos momentos ao longo do livro que “viver é muito perigoso”. Ou seja, Riobaldo observa de várias maneiras diferentes que o perigo de viver consiste no próprio fato de existir.

“Viver é muito perigoso. Porque aprender a viver é que é o viver, mesmo. Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.”

Escrever é o meu risco.

“Tá tudo criado já”

Sou mãe de três. Vira e mexe, nos eventos mais diversos, solto essa frase para o Universo que me rodeia. Quantos anos têm seus filhos?, pergunta sempre alguém a seguir. Atualmente, Hideo está com 29, Nara com 24 e Yuki com 16.

“Todos criados já.”, ouço. A frase vem com o sentido de que não tenho mais trabalho com eles. Traduzindo: que eles não demandam mais o meu tempo.

Sem fazer juízo de valor nenhum a quem vive de um jeito distinto do meu, não vejo diferença de um filho de 9 anos, para um de 29 e, no meu caso, filha que também sou, de 49 anos. 

Sei do trabalho que uma criança dá, mas também sei que uma pessoa adulta pode saber caminhar e ter muitas dúvidas para onde ir, pode saber falar concordando muito bem o sujeito com o verbo e não saber o que dizer em diversas situações, pode saber ler e sentir necessidade de conversar sobre o livro que terminou, pode ter independência financeira e ter questões profundas sobre o mal que o capitalismo faz para nossa saúde, pode ter “emprego bom” e ser infeliz, pode saber fazer a própria comida e querer companhia em um jantar,… E está tudo bem ser assim como está tudo bem ser o super homem ou a mulher maravilha ou uma pessoa não binária com poderes de independência e certeza plena de seus voos.

Aqui somos do nosso jeito.

Esse negócio de cortar o cordão umbilical não colou com a gente. O nosso tem uma elasticidade incrível e fazemos esse cordão de adereço. 

Ligo para a minha mãe todo santo dia para falar desde meus maiores medos e conquistas até a fofoca mais supérflua do dia. 

Para dar um exemplo recente, interrompi a escrita desse texto três vezes. Estou passando o final de semana em São Paulo para acompanhar o Pipo que vai brilhar no Teatro hoje.

Yuki me ligou para me perguntar como faço gohan (arroz japonês) já que ele vai fazer hoje o almoço para a irmã. Nara me ligou mais cedo para falar que vai tirar os sisos com um dentista que é vegetariano e que faz carinho nos coelhinhos. Pensei que ela estava falando por código e não compreendi a gíria. Ela disse que ele fica sim senhora muito feliz ao ver coelhos. Perguntei a ela como ela tinha informações tão específicas e ela disse que ele é perfeito e que com certeza se sensibiliza com a fofura desses roedores orelhudos.

Concluí que Nara não está enxergando um profissional e sim o futuro pai dos meus netos. Nara quando ovula vê o mundo com outros olhos.

O dentista explicou para Nara que ela poderia se cansar ao tirar os quatro sisos de uma vez e que ele pararia se isso acontecesse. 

“Mãe, eu olhei bem para ele e disse: eu não me canso.”

Conclusão. Vou ter que ir com ela na próxima consulta para verificar se é tudo isso mesmo que ela diz. 

Daí liguei para a minha mãe para contar que a Nara quer dar para o dentista que vai tirar os quatro sisos dela de uma vez. Era muita informação que não deu tempo de aprofundarmos porque Hideo estava lá almoçando com a avó contando sobre seus novos projetos.

Mandei o print para a Nara de uma conversa que tive com a Mayara que acabou de ser aprovada para o mestrado. Mayara vai trabalhar no meu gabinete e tem a idade da Nara. Nara chorou emocionada feliz (como eu) com a Mayara. 

Enfim, a minha relação de mãe (e de filha) não se encerra com a vida adulta. Pelo contrário. A cada novo aprendizado e experiência é um motivo a mais para conversarmos e trocarmos muitas figurinhas. Adoro.

Para algumas pessoas, isso é visto como dependência emocional. Para mim, estou deboaça em ter parido minhas melhores amizades.

No mais, penso que “mãe” – quando é boa de verdade como a minha – é um privilégio e tanto. Seria um desperdício de estadia não aproveitar tamanho conforto.

Não escrevi…

Gosto de olhar para trás, dessa parada de retrospectiva, de fazer planos, dessa ideia de ciclo.

Estava aqui vendo meus textos desde 2013 e lendo sobre as minhas façanhas ao longo do ano que se encerrava. Resumiam-se praticamente a quantas crônicas escrevi e livros que li.

Fiquei assustada como produzi muito menos desde 2019 (o que aconteceu mesmo nesse ano, hein?). Minhas leituras se perderam, logo eu sempre dada a um bom romance, amadora de livros pesados que me levavam para uma longa viagem. 

Esse governo que está chegando ao fim foi um buraco negro. Sugou minha criatividade, minha alegria, minha liberdade de rir e de comentar sobre qualquer coisa que visse de interessante na rua ou dentro de casa.  E meudeus como o mundo é um lugar curioso e engraçado.

Quando sentia vontade de escrever uma crônica sobre um dialogo que tive com o Pipo ou com minha gata, tinha a impressão de que eu pecava. Era como se eu estivesse rindo em um velório, entendem?

Esses quatro anos foram muito pesados. Para além da pandemia que foi algo extremamente traumático, vi de perto as Universidades acabando, a Ciência sendo questionada de forma criminosa, professores sendo considerados inimigos da sociedade, vi colegas em depressão, cada vez mais gente dormindo nas ruas, aumento do feminicídio, governante armando a população,… olha, nem sei como aguentamos tanto. 

Escrever sobre outra coisa soaria como um descaso. Seria como se estivesse pintando um quadro no meio de uma floresta que agoniza no fogo, passando uma receita vegana depois de ver um atropelamento, dançando em frente a um vulcão em erupção. 

Escrever, para mim, pareceu leviano diante o peso desses anos.

Quando, enfim, com vacina no braço voltamos a nos confraternizar, o assunto era monocórdio: a última de Bolsonaro e o perigo de uma reeleição.

Não consegui escrever sobre hoje ter um filho de cabelo rosa, uma filha de cabelo azul e outro roqueiro todo tatuado de desenhos infantis.

Não escrevi sobre o quanto a cozinha foi importante para mim na pandemia e todos os erros que cometi que me fizeram gargalhar sozinha.

Não escrevi sobre meus meses na fisioterapia para me preparar para a campanha, meus primeiros dias na Academia e sobre meus novos aparelhos auditivos que me fizeram chorar diante a fonoaudióloga.

Não escrevi sobre meus cabelos grisalhos e minha vontade de pintar todo santo dia, não escrevi que Nara ameaçou raspar o sovaco se eu pintasse meu cabelo.

Não escrevi sobre o quanto é bom namorar com quase cinquenta anos.

Não escrevi sobre o fato de ser filha de japonês e ter me dado conta o quanto isso é importante para mim e para muita gente.

Não escrevi sobre eu ter mergulhado no mar depois de mais de dez anos sem encostar meu pé em água salgada. Não escrevi o quanto ter vergonha do meu corpo contribuiu para isso.

Não escrevi sobre a Copa, sobre os filmes que vi, sobre o quanto a minha gaveta de calcinha foi importante na educação dos meus filhos e minha filha. 

Não escrevi.

Em compensação, canalizei toda a minha energia para que esse vagabundo alucinado não fosse reeleito me colocando também nessa disputa para ocupar um local de poder como resposta ao mal que nos fizeram.

Espero que 2023 seja um ano que possamos rir, falar bobagens, ler, desenhar, dançar, escrever e compartilhar nossas alegrias sem termos medo de ser inconvenientes. 

Que as instituições voltem a funcionar, que tenhamos confiança em nossos governantes e paz para trabalhar. Bem sabemos que duas mãos que se defendem não conseguem fazer outra coisa.

Que eu atenda a expectativa das 95.263 pessoas que votaram em mim porque disposição para trabalhar não me falta.

Que consigamos fazer literatura, arte, música e exercício físico para equilibrar nosso universo.

Lembrei de uma história de uma menina que sambou quando ouviu uma música no catecismo e a freira falou para ela: “Você vai para o inferno!”. E ela respeitosamente respondeu: “E lá eu posso sambar?”.

Vai levar um tempo para que tenhamos o mundo que queremos e para que nos livremos desse inferno de buraco negro. Até lá, acho que podemos e devemos sambar um bocado.

——

Em tempo, quando qualquer pessoa aqui em casa me pergunta coisas como “Onde está meu tênis?”, “Onde está minha camisa?”, “Onde está a vassoura?”, “Onde está o aspirador de pó?”, “Onde está o milho de pipoca?” e coisas afins eu sempre respondo: “Vê se está ali na minha gaveta de calcinha”. Sou dessas…

O meu estado

Há quatro anos sinto uma dor em um músculo específico chamado quadrado lombar esquerdo que piorou muito na pandemia pelo fato de ficar horas e horas sentada trabalhando com o psicológico zuretado com tantas notícias horríveis.

Meu avô sempre falou que se um motorista sabe o nome das partes do carro é porque anda em um veículo ruim que precisa ser trocado ou muito bem consertado. Nunca soube, como nesses últimos quatro anos, tanto nome de general, capitão, ministros e músculos. 

Em 2021, depois de ser vacinada, fui a um ortopedista e, após exames como ressonância magnética, ultrassonografia, hemogramas e raio X, a solução dada foi injeção de corticóide e anti-inflamatório por quase um mês.

Vivi a alegria das pessoas que acordam, sentam e se levantam sem dor. Havia até me esquecido da sensação de estar em paz com o universo das cadeiras, poltronas e sofás.

Passado o efeito das drogas, tudo voltou. Na verdade, foi “a volta dos que não foram”, pois, foi tratado o sintoma e não a causa como é a praxe, infelizmente, em muitos consultórios.

Voltei ao médico e, novamente, tomei outra injeção de corticoide e me entupi de novos anti-inflamatórios.

Passado um tempo, a dor, como avisei ao doutor que aconteceria, voltou.

Com o corpo inchado de tanta prednisona, prednisolona, hidrocortisona, dexametasona, metilprednisolona e beclometasona, parti para resolver a causa assim como os climatólogos e ambientalistas fazem em reuniões com lideranças políticas.

Fiz cinco meses de fisioterapia, acupuntura, massagem e fortalecimento muscular. Pela primeira vez em 49 anos, matriculei-me na academia e como aqueles que querem se livrar de algo ruim, trabalhei sério para isso. 

Aceitei orações, pedi que acendessem velas e segui todas as orientações do plano espiritual que me deram. Não existe ateu dentro de um avião caindo ou quando entra uma barata voadora no quarto, já disse alguém muito inteligente.

A minha meta era fazer a campanha sem dor. 

Qual o quê.

Ninguém entendeu o meu corpo e, por mais que eu pagasse, me esforçasse e rezasse, não consegui consertá-lo a tempo. 

Tudo o que vocês me viram fazendo, em todos os momentos em que estive nas ruas, eu estava pensando em Lula e no meu quadrado lombar esquerdo.

Terminado o segundo turno, enfim, dormi bem. 

Acordei e procurei outro médico. 

Este último, ao contrário do primeiro que nem encostou em mim, examinou-me decentemente. Colocou-me em muitas posições para observar a origem da minha dor, testou meus reflexos, viu meus exames e avaliou bem essa carcaça. 

Diagnóstico: “você não está doente, mas precisa de alinhamento e balanceamento. A sua contratura do quadrado lombar é gigante e o lado que ela existe está todo encurtado. Uma boa série de exercícios isométricos e muito RPG darão conta. Em 3 meses você estará sem dor.”

Há um mês, sigo à risca tudo. Não há sinal de melhora ainda, embora esteja em um novo caminho e descobrindo outras coisas nessa bagaça. Como dizem, estou velejando em águas nunca dantes navegadas.

A nova fisioterapeuta (beijo, Nayara!) está mexendo em músculos que eu sequer sabia que existiam e olha que a anterior também havia me apresentado a vários.

Para que o meu quadrado lombar se descontraia, se solte e me deixe em paz, é necessário mexer, alongar e fortalecer o glúteo médio, o sartório, o pectíneo, o iliopsoas, o bíceps o femoral, o tibial anterior e mais outros que me esqueci o nome.

Tenho lembrado muito do meu avô cada vez que a Nayara me fala o nome de mais um músculo que ela descobre que está atrofiado.

Entendi que andei errado, sentei errado, pedalei errado, deitei errado e que o Brasil não ajudou, pelo contrário. 

Mente e corpo não se separam e, cá para nós: isso começou lá pelos idos de 2019. 

O fato de eu perder a concentração para a leitura – que tanto me acalma –  desde o golpe em 2016 tem a ver com o estado que ficou o meu quadrado lombar.

Compreendi que o meu abdômen e um outro governo precisavam ter sido acionados há anos.

Enfim, hoje estive em uma reunião em que debatemos a emergência climática. Fui convidada como deputada eleita.

Discutimos que, para reverter o quadro de urgência e evitar tragédias, é necessário diminuir a desigualdade social, mexer com a Educação, com a nossa alimentação, investirmos em uma outra forma de mobilidade urbana, para além de reflorestar muitas áreas e plantar um novo sistema.

Enquanto via os slides e ouvia especialistas de diversas áreas nesse Fórum, lembrava do meu quadrado lombar não somente porque doía muito, mas por entender que tudo é uma coisa só. 

Somos holísticos assim como o planeta – quiçá o Universo.

Se algo está ruim, ainda que seja do lado de fora, mais cedo ou mais tarde, seremos afetados.

Não se conserta uma parte sem mexer no todo se a maneira equivocada que o todo se articula é o que machuca muitas partes.

Olho para o estado do meu corpo torto e lembro do Estado do Rio de Janeiro. 

Tem jeito. Sabemos que tem. 

E não vou sossegar até descobrir como aliviar tanta dor.

Gerações espontâneas. Um almoço com Bia, Claudinha e Eugênia.

Eugênia é mãe de Cláudia que é mãe de Beatriz que não quer ser mãe de ninguém.

Com quase oitenta anos, Eugênia que teve uma educação religiosa rigorosíssima casou-se virgem e tentou levar Cláudia sem sucesso para esse caminho. Beatriz nasceu sem que seu pai e sua mãe fossem sequer casados para desespero e vergonha de Eugênia.

Nada como o tempo.

Eugênia entendeu, assim como aprendemos com os livros de forma lenta e profunda, vendo Cláudia viver. Compreendeu que hímen não define caráter. E foi até aí seu aprendizado. 

Claudia educou Beatriz para ser independente, não precisar de macho e não desejar príncipes.

– Bia, seja feliz do jeito que quiser.

Hoje, Bia tem 24 anos, faz faculdade de teatro, dá aula de canto e para um monte de gente. Tem cabelo azul e se declara bi e não binária. 

Cláudia que achava que era prafrentex porque se casou depois da maternidade está aprendendo coisas ao conviver com os sovacos cabeludos de Bia. Com quase cinquenta anos, fez a transição capilar na pandemia e hoje está grisalha. 

Cláudia descobriu um tipo de liberdade como a dos urubus que não usam maquiagem, mas tem um voo calmo e belíssimo. 

Dona Eugênia não compreende os cabelos brancos de sua filha Cláudia e sempre comenta que a filha está envelhecendo – o que é o normal que aconteça com quem vive. Quando Cláudia explica para a mãe que está com quase cinquenta anos, Eugênia diz que ela pode estar assim, mas não parecer tão velha. 

– Pinta esse cabelo, Cláudia! 

Cláudia titubeia. Olha no espelho e reflete também sobre si mesma. 

– Bia, vou pintar meu cabelo e parar com esse movimento de ser bonita naturalmente que dá muito trabalho.

– Mãe, se você pintar seu cabelo, eu vou raspar meus sovacos!

Cláudia – que tem os sovacos raspados porque as revoluções, por vezes, são muito lentas – fica em silêncio pensando que talvez seja uma boa a Bia sem aquela cabeleira saindo debaixo dos braços.

– Mãe, você está linda assim. Está grisalha e está bem! Vó, deixa ela!

– Ah não deixo não porque tá feio. Tá envelhecida. E se pintar de muito preto também pode ficar estranho. Faz como eu.

Bia e Cláudia olham para Eugênia que está com o cabelo castanho claro com um rosto ótimo de quem tem oitenta anos bem vividos.

– Mãe, você fica linda assim ao natural. – Disse Beatriz.

– Beatriz, o seu cabelo é azul, Beatriz. – Observou Dona Eugênia.

Célia, irmã mais velha de Eugênia com cabelos branquiiiinhos branquiiiiiiionhos, chegou para almoçar e observou as três comendo.

– Ninguém de vocês pinta unha não? Que coisa horrorosa três gerações que não cuidam das mãos. Vou ligar para a Marinete vir aqui fazer as unhas de vocês agora! 

Taxonomia capciosa, indústria farmacêutica e tretas no Twitter. Minha modesta contribuição.

Com respeito a todas as partes no debate recente que vimos no Twitter sobre (o que é) Ciência que começou com a jornalista Cynara Menezes respondendo a uma publicação da cientista Natália Pasternack que, por sua vez, indignou-se com a Folha que divulgou a “Constelação Familiar” não alertando que se tratava de pseudociência, enfim, sobre esse “angú de caroço”, quero dar a minha contribuição porque acho que há verdades coexistindo. Se um lado está certo, não significa que o que pensa diferente está, necessariamente, errado. Cynara Menezes cobrou de Natália Pasternak o mesmo empenho que ela usou para falar contra as terapias alternativas para a indústria farmacêutica.

Pronto. Lá veio o tribunal do Twitter.

O assunto é delicado na medida que atualmente crer na medicina, à luz de tudo o que sabemos da indústria farmacêutica, seria a suprema loucura, se não confiar nela também não fosse uma loucura maior, dado todos os avanços que conhecemos.

Sabemos que nem todos os aspectos da sociedade industrial são maléficos. O desenvolvimento industrial, indubitavelmente, trouxe melhoras na expectativa de vida para uma classe privilegiada. Porém, nos locais onde temos miséria, não percebemos os benefícios de tantos avanços científicos. E isso não é um detalhe nesse debate complexo.

A solução para os problemas de saúde está longe de vir somente pela via da medicina. Precisamos considerar os fenômenos sócio-estruturais que afetam a nossa vida: a pobreza, as péssimas condições de trabalho, o estresse do tempo que perdemos indo trabalhar e a forma como nos alimentamos, para dar somente alguns exemplos.

Quantas descobertas médicas tiveram influência sobre o número de doenças causadas pela fome, pela falta de condições sanitárias e pela miséria? Problemas de saúde estão, em grande medida, conectados com direitos humanos, com a massificação da pobreza e com problemas de cidadania.

Ninguém aqui está negando o poder de um antibiótico ou de uma vacina para a diminuição da mortalidade e doenças infecciosas. Mas também podemos afirmar que a melhoria das condições de defesa do organismo se faz através de, por exemplo, uma nutrição melhor (com menos agrotóxicos e produtos industrializados) que é pouco debatida dentro de diversos consultórios (Por qual razão?).

Sabemos que a atenção médica é fundamental. Mas sabemos também que nossa saúde não melhorou com o aumento da quantidade de farmácias e das medicações que tomamos.

Caso tenhamos alguma emergência, uma dor aguda, um acidente grave, caso necessitemos de uma cirurgia ou soframos com o efeito de uma bactéria maligna em nosso corpo, a medicina será sim imprescindível.

No entanto, pela inexistência, em muitos cursos de medicina, do despertar da sensibilidade no futuro profissional de que assim como não existe uma divisão nítida entre o psicológico e o somático, tão pouco a vemos entre saúde e bem estar social, enfim, por essa carência de debate, o alcance da medicina, muitas vezes, é extremamente limitado e sua prática, a depender do profissional, até mesmo mais prejudica o paciente do que promove sua cura.

Para quem já conviveu com uma pessoa que cursa medicina, sabe que não é uma mentira que durante todo o treinamento, muitos estudantes passam a associar os sintomas e as doenças com o nome comercial de remédios. O gasto anual com o marketing dos produtos farmacêuticos que ocorre dentro das universidades e de consultórios não pode ser desconsiderado nesse debate.

Congressos científicos, auxílio em pesquisa, pagamento de passagens e estadias, brindes, assinaturas de revistas… tudo é feito para envolver profissionais de saúde em uma espécie de doutrinação.

Quem de nós sairia imune se submetidos ao bombardeio diário de propagandas feitas por pessoas de grande prestígio na área que estamos estudando? Vamos desconsiderar ou fingir que isso não acontece dentro das universidades?

Desde a graduação até a pós (que deve ser permanente para uma pessoa que trabalha ligada à ciência), a educação médica – não só no Brasil mas em outros países capitalistas – é de tal modo desvirtuada pelos fabricantes de produtos farmacêuticos e de outros instrumentos desse complexo industrial que cabem as perguntas: Como distinguir o que é pesquisa do que é publicidade? Como separar a Ciência do capital? Podemos falar em objetividade na Ciência se temos empresas envolvidas no resultado das pesquisas? Vamos negar que o mercado da Medicina é gigante e cativo? Em que medida não estamos sendo ludibriados com a falsa imagem de uma benevolência conspícua de produtos da indústria farmacêutica da mesma forma que a indústria de armamentos projeta uma falsa imagem de segurança para quem anda armado?

Apontar isso não é ser contra a Ciência. É defendê-la sem ingenuidade ou sem precisar flertar com uma linha filosófica chamada de positivismo. Posso ser contra o negacionismo sem ser uma positivista. E o problema dos debates rasos que as redes promovem é que se você não se enquadra em um conceito, por tabela, é definido por um outro que resta nessa esteira dicotômica em que digressões não são permitidas e os julgamentos são instantâneos.

Não podemos fechar os olhos que muitos enfoques dados aos problemas de saúde só beneficiam o complexo industrial de fármacos. Dito de outra forma, a estratégia desenvolvida para resolver problemas de saúde e a forma como esses são definidos constituem, em grande medida, um reflexo de como somos encarados por uma elite dominante. O profissional de saúde é, assim, um executor e não um criador dessas diretrizes como muitos acham que são.

O caminho da saúde da população não está, como diria um positivista, somente na Ciência – ainda que esta seja indispensável na discussão. Quantas tomadas de decisão sobre como, por exemplo, uma tecnologia deva ser aplicada e difundida são influenciadas por uma consciência das necessidades coletivas? Sabemos que muitas decisões são ditadas pelo critério de lucratividade. Quantas indústrias de drogas têm ambição de produzir remédios que não sejam lucrativos?

Por fim, não somos máquinas e passíveis de definição por equações matemáticas. Somos sensíveis e abertos ao que acreditamos. Por isso, a neurobiologia do efeito placebo é muito mais complexa do que imaginávamos. A nossa recepção para um placebo envolve os mesmos neurotransmissores e regiões cerebrais ativados pelos remédios. Nessa esteira, um medicamento feito à base de farinha pode sim amenizar os sintomas de uma doença grave (atenção aqui que eu disse “amenizar” e não “curar”). Por outro lado, nem só de teorias científicas é feito o saber. É perfeitamente possível que algo funcione muito bem sem que saibamos explicar por quê. Pode ser até que a simples expectativa de cura já provoque um bombardeio de reações fisiológicas reais.

Diante tudo isso e mais um tanto de coisas que não trouxe aqui, cabe sim a pergunta feita por uma jornalista para uma cientista no Twitter que foi por muitas pessoas, naquela árida rede, considerada ofensiva. Talvez, a forma e o timing da pergunta da Cynara Menezes atrapalharam um tanto. Pelo fato de conhecê-la bem, entendi como um pedido de reflexão sobre nossa sociedade e não como uma defesa da Constelação Familiar – que Cynara sequer mencionou.

Por que profissionais da saúde não gastam a mesma energia que dispensam para tratamentos sem comprovação científica para falar, também, sobre abusos de diagnósticos criados por mentalidades doutrinadas a rotular pacientes e enquadrá-los numa taxonomia muitas vezes capciosa?

A pergunta em si é um pedido de socorro.

Ao médico é atribuído, em grande medida, um caráter de infalibilidade. O poder do médico é tanto que pode levar (e leva inúmeras vezes) a abusos graves como indicações cirúrgicas sem necessidade, por exemplo, ou uma piora no estado do paciente sem que o médico seja responsabilizado por isso. Dado a nossa realidade, não sabemos se a culpa desse comportamento (que não é raro em consultórios) é dos incentivos financeiros ou de uma formação médica capitaneada pelas indústrias farmacêuticas e de equipamentos.

Não é bom refletirmos sobre isso?

Ou vamos negar o quanto o capitalismo modificou como as verdades são evocadas na nossa sociedade?

Reitero a minha admiração e respeito a todas as partes envolvidas nesse debate. Espero ter contribuído minimamente para essa discussão sabendo que as redes sociais e muito menos esse texto dão conta da complexidade do tema.

Sobre os nossos vulcões

Estava pela casa andando no modo aleatório, pegando uma roupa no chão aqui, colocando água para a minha gata, levando o lixo para fora, achando uma tarraxa de brinco no tapete sem querer, observando os livros que preciso ler, vendo uma mancha no sofá, conferindo se tem arroz para fazer o almoço e pensando no meu futuro gabinete quando, de repente, o Pipo me aparece indignado:

– Amor, você acredita que tem gente que mora perto de um vulcão mesmo sabendo que ele pode ficar ativo a qualquer momento? Imagina só, você está lá com sua família sabendo que pode morrer a qualquer momento!

E continuou a falar sobre lavas, fumaça tóxica, nuvens de fuligem, dióxido de enxofre, fluxo piroclástico (o que destruiu a cidade romana de Pompeia no ano 79 d.C.) e outras formas de morrer por estar perto de um vulcão.

Pipo estava de cara com essa (Teimosia? Obstinação? Insistência? Pertinácia? Intransigência? Excentricidade? Relutância? Ignorância?…) ignorância. Isso, ignorância. Gosto dessa palavra para esta situação porque vem do sentido de ignorar uma informação. Ignorar não necessariamente é falta de conhecimento. Ignorar pode ser sinônimo de muita sabedoria como a que vi em Riobaldo, do qual falarei adiante.

Enfim, Pipo estava passado com a ignorância de quem vive perto de um vulcão.

Ouvi meu amor atenta como os que refletem mirando um horizonte.

Daí, lembrei-me de uma criança olhando para o céu e perguntando para a mãe o que era aquilo passando pelas nuvens. A mãe explicou que se tratava de um meio de transporte super rápido que viaja pelo ar e que pode nos levar a vários locais do planeta em um curto intervalo de tempo.

A criança ficou curiosa. Queria saber como era possível esse voo, quantas pessoas cabiam, como algo pesado era sustentado pelo ar, como pousava, enfim, fez muitas perguntas como certamente muitos de nós também já fizemos, mesmo já adultos, diante de uma aeronave parada no pátio de um aeroporto.

A mãe falou sobre hidrodinâmica, equilíbrio de força, pressão e bababá bububú. A criança ficou reflexiva.

Até que ela perguntou:

– E não cai?

E a mãe respondeu:

– Bem, cair cai, mas é raro e…

– E morre todo mundo?

– É… Bem… quando cai… mas é raro cair…

A partir daí a pequena mudou o objeto da sua perplexidade.

– Por que cargas d’água uma pessoa podendo ficar em segurança no chão entra em um negócio daquele tamanho sabendo que pode cair e morrer?

O avião era para a criança algo como um vulcão é para o Pipo.

Creio que muita gente aqui faz um punhado de coisas que gera incompreensão em outras. Eu, por exemplo, tenho a política como um vulcão. Um galerão já veio me perguntar por que eu, que podia estar calma no meu canto lendo, escrevendo e dando aulas, desejei e sigo muito animada para estar na Alerj.

Por que as pessoas escalam o Monte Everest? Como tem gente que tem coragem de jogar futebol sob o constante risco de receber uma canelada no joelho? Por que damos saltos mortais e isso virou modalidade olímpica? De onde vem a tranquilidade para usar uma panela de pressão? Por que pagam para pular de paraquedas? Como conseguem beber refrigerante, consumir tanto açúcar refinado, andar de moto, mergulhar em cavernas, colocar piercing no nariz, fazer lipoaspiração, andar pelas ruas do Rio de Janeiro, dirigir em estrada, tirar cutículas ou amar alguém? Por que nos arriscamos tanto?

Impossível não me lembrar de Riobaldo, narrador-personagem do romance “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Riobaldo vira e mexe falava:

“Viver é muito perigoso”.

Eu, amante da Ciência, das técnicas, dos números, dos cálculos e das previsões que nos dão tempo para nos proteger de alguma ameaça, já pensei muito – quando resolvia equações envolvendo probabilidades – sobre o quanto somos reféns do imprevisível.

Ao ler Guimarães Rosa, compreendi na literatura – e não na matemática – que “o mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”, como falou Riobaldo com seu maravilhoso dialeto.

Ou seja, o perigo não é se perder no meio dos próprios objetivos, ignorar os riscos e não enxergar a morte iminente.

Morar perto de um vulcão e andar de avião pode dar, de fato, a chance para fatalidade.

Mas…

Estar perdido é a própria condição de viver. Nosso querer não tem explicação e há um tanto de beleza nessas incompreensões.

Há como viver e não estar em perigo? Há uma melhor oportunidade de se chegar aonde não se espera do que fazer algo novo?

Fazemos boas especulações de como surgiu o Universo, mas por que ninguém ainda descobriu a origem desse ímpeto que vem de formas diferentes em cada pessoa? Estar em uma zona de conforto não é um tipo de morte em vida?

É isso. Estou aqui com uma tarraxa de brinco na mão pensando sobre os nossos vulcões.

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Em tempo, no mundo inteiro, 550 milhões de seres humanos moram perto de vulcões ativos, muitos desses com excelente qualidade de vida.