PEC do Calote

Alô, Brasil. Teve episódio do House of Paranauê de madrugada! A Câmara aprovou o texto-base da PEC dos Precatórios em primeiro turno, por 312 votos a 144.

A proposta recebeu somente quatro votos a mais que os necessários (308) para aprovação de uma emenda à Constituição. Ou seja, foi uma vitória apertadíssima para eles.

Para quem não sabe o que é precatório, de forma resumida, é um documento que comprova a dívida que o Poder Público tem com uma pessoa ou uma empresa.

“Como assim?”

Vou dar um exemplo real.

Alguns Estados e municípios moveram ações contra a União por discordâncias nos repasses dos fundos educacionais.

A galera foi lá, analisou as reclamações e pá. Viram que, de fato, estavam repassando dinheiro a menos para os fundos – como o Fundef que era o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério.

“Daí o que faz? Paga assim na hora?”

Não. Não é assim porque dinheiro público não é bagunça. Pelo menos, não deveria ser.

Há urgências que precisam ser analisadas e, por isso, temos o precatório que garante que a dívida será paga.

E há, obviamente, um prazo para isso.

Neste caso específico do meu exemplo real, os recursos oriundos das decisões judiciais eram para pagar a remuneração de profissionais da educação básica e despesas com manutenção e desenvolvimento da educação, como aquisição de material didático-escolar e conservação das instalações das escolas.

Daí, vocês viram que Bolsonaro acabou com o Bolsa Familia que, em sua essência, não tinha data para terminar, né?

No seu lugar, colocaram algo que ninguém entende direito como será, mas que tem data certa para terminar que é no ano que vem, ano de eleições presidenciais. Assim nasceu o Auxílio Brasil que cumpre uma função nobre de ajudar quem precisa, mas com um objetivo altamente eleitoreiro.

Como disse, o Esmola Brasil, ops, o Auxílio Brasil é um programa sem pé nem cabeça e eles começaram a dizer que não sabiam de onde iam tirar o dinheiro para o que tinham inventado.

Quando há uma situação de urgência como essa no país (neste caso, a fome), nossas leis permitem a abertura de um crédito extraordinário. Não seria a primeira e nem a última vez que isso aconteceria.

Mas o que fizeram? Uma emenda à Constituição conhecida vulgarmente como PEC dos precatórios que nada mais é do que uma PEC do calote.

Disseram que para pagar o auxílio tinham que esquecer os precatórios.

“E quem estava esperando o dinheiro, como os professores?”

Que esperassem sentados assim como outros que acreditaram que um documento neste Brasil – como a promessa de pagamento da dívida assinada pelo Poder Público – valesse alguma coisa.

“E como tanta gente votou a favor disso?”

Muitos deputados receberam várias emendas como moedas. Emendas, neste caso, quer dizer muito dinheiro. Então, para votar pelo calote, eles receberam essas emendas. Ou seja, todo mundo pensando em eleições 2022, conseguem perceber?

“Mas que emendas são essas?”

Rá. “Emendas secretas”. Foi assim mesmo, pasmem, que elas foram chamadas.

“E deputados que não estavam lá e não podiam votar de acordo com as regras?”

Muito fácil para o presidente da Câmara, Arthur Lira, resolver essa. Ele numa canetada modificou ali na hora o regimento interno e passou a ser permitido que parlamentares em missão oficial pudessem votar remotamente. Até assessor de deputado podia votar. Foi uma festa daquelas.

Depois de hoje, se tiver parlamentar no Japão, na China e na Conchinchina pode votar porque aqui, mermão, aqui é Brasil.

Eu diria que foi uma das maiores cenas de corrupção a olhos vistos – para quem não dorme neste país já que toda essa história foi pela madrugada.

Se você entendeu que tudo não passa de um calote em professor para comprar deputado, você está compreendendo bem até aqui.

“E o teto dos gastos que a direita criou que deixou a Educação e a Saúde super vulneráveis dizendo que era hiper necessário o teto para o Brasil não acabar?”

Foi furado para garantir esse auxílio até 2022.

“Mas e aquele papo de “responsabilidade fiscal”?”

Pois é. Como dissemos, e cansamos de repetir, era mentira.

Se você ainda está em dúvida se isso é bom ou ruim, vou tentar ajudar: o tal “Deus mercado” ficou muito feliz.

“Por quê?”

Aparentemente, porque não se importa com calote da dívida pública e sim com o mercado.

“E por que isso vai beneficiar o mercado?”

Porque esse negócio de precatório se vende fácil.

“Como assim?”

Suponha que você tenha um precatório de 30 mil que está para receber no final de 2022 e está precisando muito de dinheiro. Daí, tem gente que fica atenta a isso e já te oferece 20 mil pelo seu precatório.

E estamos falando, só de dívida com o antigo Fundef, de 16 bilhões, ok? Tá ligado no que estou dizendo?

Se você entendeu que eles falaram que queriam proteger os mais pobres e deram um calote nos precatórios, presenteando deputados com as ‘emendas secretas’ para fazer um programa mequetrefe que será aplicado somente durante o ano eleitoral, você entendeu bem até aqui.

Agora, então, você consegue me responder:

É a fome de quem que eles querem matar com isso?

“Nem terminou a marmita”

Li, há tempos, o livro “O Último Trem de Hiroshima” de Charles Pellegrino. Qualquer relato sobre a bomba atômica que conte como a população civil foi alvejada é por demais inesquecível. Neste livro, Pellegrino ouviu vários sobreviventes e registrou suas histórias. 

Há diversas imagens que jamais sairão da minha lembrança narradas por quem testemunhou ou sobreviveu a tanta dor. Uma cena, porém, volta com mais frequência tamanha é a estranheza, a intensidade e a realidade do gesto descrito.

Foi o caso de uma mãe que, sabendo da tragédia de que a bomba tinha sido lançada, correu sobrevivente, depois da explosão, em direção à escola para achar seu filho. 

Encontrou-o morto pelo caminho. 

Queimado. 

Antes de chorar, a mãe checou a lancheira de seu filho para ver se ele tinha se alimentado e, vendo-a vazia, sentiu-se consolada por milissegundos.

No mês passado, aconteceu uma história parecida, mas com outro cenário. A mãe de Gabriel Araújo, jovem negro de 19 anos morto a tiros em uma operação de combate ao tráfico de drogas da Polícia Civil no Morro do Piolho, na zona sul de São Paulo, ao ver a comida de Gabriel suja de sangue, lamentou “Nem terminou a marmita”, ao mesmo tempo que contestava a ação dos agentes no local.

A mãe de Gabriel não teve sequer o breve tempo de consolo que sentem as mães ao verem seus filhos alimentados.

São duas histórias que se cruzam na violência que deixa inúmeras mães órfãs e que nos mostram a intensidade do significado que tem, para as mães, ver um filho com fome. É algo que é capaz de aumentar o que já é por si insuportável: a perda eterna de apetite.

Pode ser cultural esse laço – e não institivo -, como dizem. Mas, uma vez feito, embrulha tudo.

E esse tudo é tanto que a morte do filho que não se alimentou tem, diante dessa unificação e de tantas tragédias, um outro sentido. Não sei se é passível de tradução, mas creio que valha saber, para quem lê este mundo, que essa dor, tão ímpar, também existe.