Coitado do Vitor…

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Nara, minha filha adolescente, ontem veio me falar que vai passar o fim de semana fora acampando com os amigos em um sítio em Xerém.

– Quem vai? – perguntei porque sou mãe e tenho que saber das budega toda.
– Marina, Pedro, Mateus, Vitor, e eu. – respondeu ela prontamente.

Pensei um pouco e falei:

– A conta não está fechando…
– Mãe, que conta?
– Três meninos e duas meninas. Alguém vai sobrar…
– Mãe, não tem conta. Vou com meus amigos. – Disse ela seriamente me olhando como se eu fosse um sei lá. Um ET.

Fiquei chocada com a ingenuidade de Nara que vai fazer 18 anos em março! Não é possível… muito lerdinha…

– Isso não existe, minha filha. – tentei explicar mantendo a calma. – Quando a gente sai para acampar com os amigos na adolescência , como diria de uma forma que você me entenda…, quando a gente acampa na adolescência com os amigos… a gente… Tipo… Coitado do Vítor. Vai sobrar…
– Mãe, eu vou ficar com a Marina.

Que bom que Nara é normal. Que susto viu…

Retrospectiva 2015

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2015 não foi mesmo um ano normal. Começamos com Dilma assumindo a presidência em Janeiro, Eduardo Cunha, em Fevereiro, em Março vimos a elite batendo panela nas varandas achando que o Brasil ia melhorar com esse barulho e pessoas protestando contra a corrupção fazendo dancinhas com a camisa da CBF. Isso para começo de conversa. Depois tivemos 89 dias de greve dos professores da rede estadual de São Paulo, professores do Paraná apanhando da polícia, Dilma com Obama, Dilma sancionando a Medida Provisória que restringe o acesso a direitos trabalhistas como o seguro-desemprego, o abono salarial e o seguro-defeso… assim acabamos dobrando a meta e tivemos dancinha do impeachment, o pato do impeachment, os fascistas do impeachment e o mico do impeachment, porradaria no Conselho de Ética, carta de Temer para envergonhar toda a nação, alunos “invadindo escolas”, discussão calorosa sobre redução da maioridade penal, mídia de forma escancarada fazendo campanha para 2018… Terminamos o ano com duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo.

Fora da política (se é que isso é possível), alguns fatos marcantes como o Estado Islâmico se superando, o beijo gay na novela entre as personagens Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg), terremoto no Nepal com quase 10 mil mortos, a atriz “crucificada” durante a Parada Gay, nascimento da filha de Kate Middleton e príncipe William, o direito ao casamento entre homossexuais dado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, fotinhas muitas fotinhas coloridas, Xuxa na Record, Zika Vírus, menina de 11 anos levando pedrada na cabeça de evangélicos radicais por ser do candomblé, menininho “dormindo” na praia, Uber versus taxistas, miga pra lá migo pra cá, prova do Enem, redação do Enem, campanha‪#‎MeuPrimeiroAssédio‬ e ‪#‎MeuAmigoSecreto‬, gafe na Miss Universo, Museu da Língua Portuguesa,…

Nous sommes beaucoup de choses em 2015… Je suis Charlie Hebdo, Je suis Mariana, Je suis Paris, Je suis Refugiados Sírios no Brasil, Je suis Amazônia…

Memes? Vários engraçadíssimos e outros nem tanto. De que cor é esse vestido?, Você pode substituir, por exemplo, Bela Gil por falsete da Mc Melody, pedimos nudes para o Padre Fábio de Melo e vimos o bilau do Stênio Garcia… Tem mais! Senhora? Senhora?, Já acabou, Jéssica? Ainda não. Se Dilma cair, quem assume é o Aécio?, dois dias, quer dizer, duas horas sem o WhatsApp e John Travolta perdido no meio de tantas notícias surreais…

Perdemos muita gente que fará uma falta danada (ao menos para seus pais) que viraram notícia nesse ano bizarro: O menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, baleado por policiais durante operação do Batalhão de Choque no Complexo do Alemão, o médico Jaime Gold que andava de bicicleta na Lagoa, Leonard Nimoy, ator que interpretou o Sr. Spock no “Jornada nas Estrelas”, o músico José “Rico”, o sertanejo Cristiano Araújo (que ninguém sabia quem era) em um grave acidente de carro, o ator Claudio Marzo aos 74 anos, o humorista Jorge Loredo, intérprete do personagem Zé Bonitinho, o ator, diretor e apresentador Antônio Abujamra, de 82 anos, B.B. King aos 89 anos, o ator fofurééésimo Elias Gleizer com 81, o “Ken Humano” brasileiro, o ator britânico Christopher Lee, famoso por sua lendária interpretação na saga “Senhor dos Anéis”, o mito Marília Pêra, o cantor de rock Scott Weilland, a lindíssima e simpaticíssima atriz e modelo Betty Lago, outra linda: a Yoná Magalhães, o médico e escritor Oliver Sacks, a artista plástica Tomie Ohtake aos 101 anos, o ator e diretor Miele, o psiquiatra e educador Içami Tiba, o comediante Tutuca. Eduardo Galeano, ah Eduardo Galeano, por que partiste?, …

Eu (já que sou eu que estou fazendo a retrospectiva vou falar um pouco de mim, para variar), entrei para o twitter e viralizei de formas muito diferentes aqui no facebook. Teve vídeo das vacas, depois Canal Record, fui parar no Não Salvo, depois teve vídeo do Yuki contra o racismo, meus filhos no Aniversário Guanabara, postagem explicando a “estocagem do vento”, Prova de Relatividade que me levou para a Revista Galileu (dentre outras), crônica que se passa dentro do banheiro do CEFET… E, embora não tenha viralizado mas foi o grande evento neste ano para mim, o nascimento de mais um filho de papel: meu livro Minha Vida é um Blog Aberto que tem uma seleção de 26 crônicas de mais de 300 que estão publicadas lá no meu Blog homônimo ao livro. Ah! E também teve a participação no livro “2014 – O Espirito da Copa”, ao lado de grandes cronistas do futebol! Uma grande honra isso…

Isso, com certeza, não foi tudo, mas foi o que consegui lembrar. Um ano e tanto, não?, apesar da crise…

O que o Mundo fez.

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Quando era criança, eu rezava todas as noites antes de dormir. Muitas vezes aconteceu do sono chegar antes do amém, o que me causava um sentimento de culpa enorme, pois, para mim, havia cometido uma tremenda grosseria de sair de uma casa sem me despedir do dono. Eu tinha muitas bonecas de papel e ficava muito mais tempo fazendo as casinhas delas com caixas de sapato – que sempre pedia nas lojas – do que brincando efetivamente com elas. Um dia, quando o pão caiu no chão eu fui correndo lavá-lo para comê-lo e me surpreendi com o resultado, uma pasta mole cheia de manteiga. Sempre quis ter padrinhos. Os que meus pais escolheram eram nossos vizinhos na época em que morávamos em Pilares e desde os meus quatro anos, após nos mudarmos, nunca mais eles me procuraram. Coloquei na minha cabeça que tio Rubinho e tia Nair eram os meus padrinhos e falava para meus amigos e primos essa mentira várias vezes. Todos sabem que uma mentira muito repetida vira uma espécie de verdade dendagente. Chorei rios quando os vi dando um presente de Natal para minha prima Letícia, a verdadeira enteada, e nada para mim. A verdade é que eu nunca tive padrinhos e isso, na infância e naquela época, era ser uma espécie de orfã. Pulava corda cantando meu namorado vai ser branco, louro, preto ou moreno e adorava escrever cartinhas de amor cheias de clichês. Lastimei, como lastimam a morte de um ente querido, quando meu porquinho da índia morreu.

Vejam só que menina ingênua  o mundo perdeu…

Quando era adolescente, sonhava em casar e ter filhos e morrer ao lado do Nelson. Achava que nos amaríamos o suficiente para envelhecermos um ao lado do outro. Lia Paulo Coelho e o achava muito bom. Aprendi a dançar lambada porque não sabia – ainda – que não levava jeito para dança. Peguei muito Sol sem proteção porque acreditei que sempre teria quinze anos. Não entendia as aulas de história em que se falava mal da ditadura. Afinal, meus pais sempre falaram que foi um período bem tranquilo para o Brasil. Encontrei Ayrton Senna e Xuxa (para quem não sabe, eles namoraram) no show do Oswaldo Montenegro. Enquanto muitos olhavam para a Xuxa e gritavam o nome dela, eu cheguei perto do Senna e disse muito obrigada. Ele sorriu e eu chorei quando Oswaldo Montenegro começou a cantar que amava como amava um beija-flor de qualquer clichê de cabaré, de lua e flor. Nunca tirei “A” nas redações e saí da escola acreditando que não sabia escrever. A crítica sempre era porque eu escrevia na primeira pessoa, atitude condenável e imperdoável em um texto, diziam-me. Fui expulsa da aula de geografia por estar lendo o livro O Mundo Assombrado pelos Demônios de Carl Sagan. Queria ser atriz. Fazia parte do clubinho de francês e me encantei com Edith Piaf. Amava o verão. Filiei-me a um partido político.

Vejam só que adolescente romântica o mundo destruiu…

Agora adulta, tenho três filhos de idades bem diferentes. Todos artistas. Entrei para aula de dança para reaprender a caminhar. Sou contra o sistema tradicional de ensino e qualquer tipo de religião (mas não de religiosidade). Sou ateia por parte de pai. Não acredito em escolhas. Jamais quis ser vista como autoridade tanto em sala de aula quanto dentro de casa. Sou de esquerda. Tenho facilidade de copiar qualquer figura, mas não consigo criar a imagem de nada. Não acredito em signos mas acho relevante dizer que nasci em pleno Carnaval. Exponho-me de uma forma que muitos acreditam que sabem tudo sobre mim. Tenho uma formação esquizofrênica. Fiz graduação em Física, mestrado em História, doutorado em Filosofia e sou formada em italiano. Fui premiada na área de literatura e me tornei uma espécie de “rainha das redes sociais”, título dado por meus alunos.  Quando tomo banho me distraio com o vapor que ofusca o teto e se estou limpa, leio. Escrevo sempre com a mesma lapiseira, mas mudo sempre de caligrafia. Não sei usar vírgulas e muito menos pincel. Estou solteira e aprendendo a viver o presente. Não crio mais expectativas. Minto sempre, mas falo muitas verdades também. Tenho amigos que nunca vi mas que não são aqueles imaginários da infância, são outros (imaginários). Escrevo sobre tudo que me incomoda, me engasga e me sufoca – muito menos para ser lida do que para tentar organizar algumas ideias. Busco perguntas e não mais respostas. Até pouco tempo atrás, não conseguia dormir, comer e nem ir ao centro da cidade sem companhia. Hoje durmo só. Minha força, definitivamente, não está na solidão. Preciso sempre ser orientada e jamais busquei a independência. Moro ao lado dos meus pais. Já fiz terapia e saí antes que me dessem alta. Sonho com as primaveras.

Vejam só que mulher perdida o mundo criou…

A História de Ling e Maurice

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Ling e Maurice estavam em uma excursão conhecendo o Chichén Itzá, uma cidade arqueológica maia localizada no estado mexicano de Iucatã, quando se conheceram quase na virada deste milênio. Ling fala chinês, Maurice, francês e os dois só se comunicam até hoje “muito bem” em inglês, ainda que cada um com seu sotaque. Ling é escritora e amante da filosofia e das ditas ciências exatas. Maurice é um francês alucinado que curte Lacan e artes marciais. Enfim, enroscaram as línguas, lamberam-se intensamente, amaram-se e foram morar juntos em Nova Iorque, onde Maurice conseguiu um emprego.

Ainda que duas pessoas quaisquer nesse mundão de meu deus sejam dois universos, Ling e Maurice eram dois, digamos, sistemas que viviam coisas absurdamente diferentes até mesmo quando estavam juntos, como por exemplo, fazendo amor. Maurice, que conjugava no passado, no presente e no futuro, imaginava o tempo como uma reta horizontal começando na esquerda e terminando na direita assim como muitos de nós escrevemos. O relógio, de fato, marcava a passagem de algo para ele e, ao gozarem, o sexo para Maurice terminava em um instante definido. Ling com sua mente moldada pelo mandarim não pensava sobre o que está para trás ou por vir já que nesta língua não há o que chamamos de pretérito, de ontem e nem de amanhã. Enfim, as coisas para ela se, por exemplo, aconteciam no que chamamos de Domingo, começavam (se é que podemos dizer assim) desde  xīng qī sìxīng qī wǔxīng qī liù e continuavam na xīng qī xīng qī èrxīng qī sān que são os dias da semana que vêm antes e depois do que na língua inglesa chamam de dia de Sol. Expliquei-me mal porque o português me limita. O que quero dizer é que, para Ling, a dança entre eles persistia ainda que a música não fosse mais ouvida.

Escutar as histórias de Ling, mesmo que ela as conte em inglês, causa uma confusão dos diabos na cabeça de Maurice. Ling tem uma cronologia própria dos orientais que é um desafio para qualquer um que deseje se aventurar no campo da sinologia ou que queira simplesmente conversar com uma chinesa. Ling não consegue conjugar o verbo “to be” com a mesma naturalidade de Maurice que fala je suis isso, je suis aquilo. O mundo material para ela sempre foi entendido como um mundo que constantemente se transforma e qualquer manifestação da realidade para Ling é dada sempre em uma forma dinâmica. Assim, voltando para o entrelaçamento de pernas que acontece entre eles,  a essencialidade dessa troca de fluidos não se apresenta diretamente para ela, mas é apenas mediada pela forma com que emerge. Já para Maurice, o mundo é formado por várias coisas que são, em grande medida, objetos materiais. Oras, em chinês, “coisa” nem sequer tem tradução equivalente porque eles consideram tudo como “fenômenos”. Como conjugar o verbo “ser” dentro de uma realidade em completa mutação?, essa é uma pergunta que Ling se faz sempre que tem que dialogar com Maurice em inglês.

Amar, esse verbo intransitivo para Mário de Andrade e um intrometido para mim, era infinito para Maurice assim como o é para muitos de nós mortais e ocidentais. L’amour c’est éternel!, pensava ele em francês quando lembrava de Ling que, por sua vez, via tudo em processo de natural geração, maturação, decadência e extinção, sejam objetos, animais, planetas, estrelas, galáxias… ou o amor. Traduzindo o que cada um diz para o português quando se ouve deles um “I Love You” no acariciar de suas línguas, Ling profere: eu continuo em você e Maurice, eu me identifico com você… ou algo assim. Mencionei isso somente para conseguirmos vislumbrar o que vem a ser a comunicação entre Ling e Maurice e os demais seres humanos. Como nos entendemos – se de fato nos entendemos – é um milagre.

Maurice acredita que escolheu viver com Ling pois, para ele, há uma cadeia causal. Ling percebe que amar a companhia de Maurice é um processo que ocorre completamente independente de sua vontade. Se ela pudesse escolher, escolheria não amar para não sofrer.

Percebam como as realidades de ambos são ímpares. Os átomos do corpo de Maurice, para ele, pertencem a ele somente. A despeito da física moderna nos mostrar que quando duas partículas emaranhadas estão distantes umas das outras elas ainda se comportam como uma entidade única, levando ao que Einstein chamou de ‘ação fantasmagórica à distância’, a ciência é tida como um conjunto de “teorias” ou “hipóteses” para muitos. Portanto, essa informação não é suficiente para alterar a sensação da existência de seres únicos que era, por exemplo, ele -Maurice – e outro independente que ele chama carinhosamente de “minha Ling”.

Os átomos de Ling, vejam vocês, têm uma história completamente distinta. Originaram-se no interior de estrelas como subproduto de uma atividade que produz sua energia ao fusionar alguns elementos. Eles se espalharam pelo espaço quando esses astros explodiram no final da sua vida e concentraram-se ao redor do Sol quando ele se formou, passando a fazer parte do planeta Terra e, finalmente, chegaram a formar o corpo de Ling. Um dia, esses átomos voltarão a se espalhar pelo espaço, independentemente do fato de Ling ter sido cremada ou sepultada. Para Ling, então, há muita coisa acontecendo além do seu “eu”. Seus desejos aparecem sem que sejam convocados. Ling não sabe onde ela começa e muito menos onde termina, mas entende que seu ser agora engloba o de Maurice.

De qualquer forma, independente do filtro usado pelo olhar de Ling ou de Maurice e como eles interpretaram o que entre os dois aconteceu, o que eles viveram é algo que no português traduzimos como “felicidade”, aquilo que funciona como a borboleta: quando a perseguimos nos escapa, quando desistimos de persegui-la, pousa em nós. Nem ela nem ele foi para aquela excursão em Chichén Itzá buscando alguma coisa além de entretenimento e quando menos esperavam o inseto supracitado invadiu o estômago de ambos.

Quando Ling conheceu Maurice, estava como sempre interessada em viver o presente que em seu idioma pátrio engloba os outros tempos verbais  tanto o passado quanto o futuro. Nem sei se foi certo isso que disse, pois para muitos chineses não há antes, durante e depois. Enfim, seja o que for, Ling observou a beleza de Maurice assim como a inteligência do lindo rapaz não somente como uma oportunidade, aquilo que vem ao nosso encontro, mas também como um tipo de disponibilidade, a abertura que temos de ter para acolhê-lo.

Maurice, por ter se desenvolvido dentro de um outro mundo onde é imposto a separação e a oposição dos tempos verbais, tinha-lhe o presente inacessível, pois, este foi reduzido no plano físico a um ponto sem extensão, ou seja, a um instante. Portanto, Maurice estava condenado, no plano metafísico, a viver de lembranças e se projetando em um ilusório caminho que só existe em mentes que separam o subjetivo do objetivo como funcionam as dos ocidentais. Ora, e desde quando viver passou a ser da ordem da travessia entre dois extremos? O “viver em si” é pensável do exterior? Para Maurice, essas perguntas sequer eram inteligíveis. Mas ainda assim, ele queria viver com sua Ling o futuro, assim por ele entendido, que lhe restava.

E saibam que, até hoje, esse casal vive junto. Ling, sem acreditar em  livre-arbítrio. Maurice, constantemente querendo entender o que ele é afinal. Essa questão que tanto o movimenta, ele jamais conseguiu traduzir para sua Ling de uma forma que ela o compreendesse, pois,  pelo menos na escrita chinesa, não há equivalente para o verbo “être” ou “to be“. Se o que um fala o outro assimila como é pensado por quem discorreu não sabemos. Possivelmente, pelo pouco que consegui relatar aqui, não. Nem sequer um consegue se apoderar das muitas perguntas do outro…

Há quem acredite que o amor está na soma das compreensões. Clarice Lispector, na contramão, disse que somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Eu creio, depois de ter conhecido Ling e Maurice, que o entendimento entre quaisquer dois seres nesse planeta só acontece com a partilha de sentimentos como sofrimentos e alegrias. Afinal, sentir é pensar sem ideias, e por isso comungar sentimentos é, de alguma forma, um entendimento – visto que o Universo não tem ideias.

Ling e Maurice nasceram, como nós, com vários defeitos, mas não o de querer entender uma pessoa só com a inteligência. Ambos sabem que o que se pensa não pode ser assimilado pelo outro, seja pelo obstáculo da língua seja porque simplesmente a comunicação é mesmo um tipo de ilusão. E eles não estão nem aí para isso, pois, perceberam que compreender o que outra pessoa pensa é concordar ou discordar dela. Mas compreender o que um ser sente… ah aí é fazer com que dois universos sejam amalgamados pela eternidade – seja lá o que isso for.

Parte de uma Poesia

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Estava andando pelo comércio esquizofrênico de Madureira quando passei por uma loja de brinquedos e parei em frente a vitrine para olhar uma opção de presente para Yuki, meu caçula de nove anos. Poucos segundos depois, uma menininha negra com uns olhos que mais pareciam duas jaboticabas parou ao meu lado acompanhada de sua mãe. A criança estava extasiada com uma boneca que parecia um bebê de verdade.

– Jaque, mamãe já falou que não tenho dinheiro para comprar essa boneca!
– Mãe, não estou pedindo para você comprar ela para mim. – disse Jaque calmamente – Eu só quero admirar ela por mais tempo…

Fiquei a contemplar a cena a tempo de ver escapar uma lágrima furtiva da mãe. A menininha estava com um semblante feliz. De fato, não parecia querer possuir a boneca. Observava o brinquedo como observamos uma rosa vivendo em uma roseira.

– Podemos voltar amanhã de novo para eu ver ela mais um pouquinho?

E esse foi o meu presente para o Yuki: a honra de poder fazer parte de uma poesia.

Cinquenta Anos de Brasil

Meu pai completou hoje 50 anos de Brasil. Com quase trinta anos de idade, ele resolveu sair do outro lado do mundo para tentar reconstruir a vida dele nesse país tão múltiplo de raças, crenças, música,… Para quem perdeu o pai e teve a família desmembrada ainda quando criança durante a Segunda Guerra e ainda acompanhou todo o pós-guerra no japão, tratava-se de um recomeço mesmo.

Papai veio para cá sem saber falar um oi em português e casou-se com a minha mãe falando ainda muito mal a língua. Dizem eles que no amor existem outras formas de se comunicar. Tiveram quatro filhos, hoje cinco netos e, juntos, tivemos não sei quantos bichos de estimação.

Papai sempre sempre sempre nos levou para passear quando criança, jamais negou dinheiro para livro e não sei o que é um ‘não’ quando precisei dele. Antes que eu peça, papai sempre está ao meu lado e esteve nos momentos mais importantes da minha vida. Ele cansou de nos dizer que saiu do Japão sem nada, só com o que tinha na cabeça e que, portanto, valorizássemos o conhecimento, a nossa formação, os estudos porque podem nos roubar tudo menos o que carregamos dendagente.

Nós quatro, eu e meus três irmãos, estamos na categoria dos “bem sucedidos”. Todos formados por Universidades Públicas Federais e bem empregados. Os netos indo pelo mesmo caminho… e grande parte disso, devemos as orientações e a dedicação dele.

Daí que a vida é engraçada… se eu olhar toda a cadeia causal fico confusa. Se ele não tivesse tido a infância tão cheia de traumas e sofrido tanto com esse diabo de guerra, talvez eu não estivesse aqui. Ficar feliz por ele ter vindo com tudo considerado chega a ser cruel da minha parte. Mas não posso deixar de dizer o quanto o admiro e o tenho como exemplo.

Eternamente grata serei por ele ter resistido e insistido em ser feliz de novo.

Espero continuar dando todo o carinho que você merece, pai.

Amor. Só amor aqui para você. De todos nós.

O que me faz Bem.

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Todo santo dia, uma novidade.

A última foi que bacon dá câncer. Coisa mais sem graça. Café faz bem, café faz mal, nunca sabem… tomate faz bem para a próstata, e eu que não tenho? Faz algum efeito? Ovo aumenta colesterol, ovo ajuda a diminuir o colesterol. Como assim resultados tão antagônicos? Chocolate não engorda, essa eu adorei. Vinho emagrece. Muita água não pode mais e bababá bububú.

Eu só observo e diante desse quiprocó que médicos e nutricionistas aprontam com o que ingerimos, acho mais seguro seguir meu coração que está tinindo segundo o último exame. Pelo visto, como ninguém, sei direitinho o que faz bem e o que faz mal para minha saúde.

Ler um bom livro faz eu me sentir oxigenada.

Viagens longas não me incham as pernas, me incham o cérebro, volto cheia de ideias.

Pessoas discursando sem fundamentar os argumentos de forma inteligente me dá náuseas.

Dormir me deixa 0 km. Comer me faz correr oito.

Televisão chega a dar taquicardia. Deveria ser proibido pelos cárdios.

Conversar com filhos me rejuvenesce. Conversar com meus pais me infantiliza, o que é muito bom.

Acordar de manhã cedo e álcool me dão dor de cabeça. Beijo bem dado cura.

Fungar pescoço cheiroso é melhor que fumar.

Stalkear provoca arritmia cardíaca.

Humor protege mais do que vitamina C.

Amigos são a minha melhor terapia.

Escrever aumenta minha endorfina.

Receber mensagens carinhosas do crush aumenta a minha serotonina. Ir ao seu encontro, a minha adrenalina.

Testemunhar gente jogando lixo no chão me faz perder a fé na humanidade. Ver gente cuidando de bichos equilibra meu Universo.

Esperar para ser atendida pode me causar mais câncer do que quatrocentas gramas de salaminho.

Perguntar parece que tem atrasado a chegada do Alzheimer.

Não vou à academia, não rezo, não medito, corro quando dá na telha, como o que aparece pela frente seja assado, frito, cozido ou cru, mas peço perdão sempre que acho que feri alguém, tenho ido a lugares onde tem batucada bem batida, encontrado com amigos novos e de adolescência, chegado no horário, jogado conversa fora, afofado muito minha vira lata, regado as plantas, comido jabuticaba colhida da jabuticabeira da casa dos meus pais, pintado os ovos antes de guardá-los na geladeira, estourado bolinhas do plástico-bolha, eletrocutado moscas com raquete, evitado criar expectativas mas me permitindo ao menos fantasiar um final de semana romântico, sonhado quando durmo e acordada muito mais.

Enfim, tenho confiado que tudo isso e muito mais podem me levar a uma idade avançada.

Sendo, frequentemente, aquilo que todos têm lido. Estando naquilo em que escrevo.

Salvos pela Infância

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Por conta dessas modernidades de rede social e smartsphones, quatro amigos solteiros se reencontraram depois de uns vinte anos sem que houvesse algum tipo de comunicação nesse tempo. Resolveram “sair para beber”, pois bem sabemos que a bebida é uma enzima que cataliza o diálogo. Todos eles já tinham completado mais de quarenta invernos e raras e inesquecíveis primaveras.

Quando a madrugada já apontava, Amanda, a única mulher no grupo, querendo puxar mais assunto, perguntou:

– Há dez anos atrás, como estavam vocês nesse tempo?

Silêncio na mesa. Henrique que estava rindo ficou sério. Guilherme pediu ao garçon uma destilada e Luis enxugou uma lágrima furtiva que saiu assim de repente.

Amanda percebendo que havia mexido onde não devia tentou consertar:

– Mas o Vasco, hein?! E aí, vocês acham que Dilma sai ou fica?

Todos quietos com o foco do olhar para pontos diferentes no ar. Amanda que promoveu essa bad de uma hora para outra ao propor um recuo no tempo acabou perguntando para os três de uma vez:

– Ainda a amam? – E pediu mais um chopp.

Todos bebiam, mas quando o copo não estava em contato com a boca, os lábios se apertavam espremidos um contra o outro formando algo parecido com uma parábola com a concavidade para baixo. Estavam cheios de nunca mais nos pensamentos.

Henrique havia se separado há cinco anos. Ficou casado quinze. Guilherme nunca casou, mas chegou perto disso lá pelos idos de dois mil e blá. Luis fazia um ano que estava nessa vida de solteiro. Odiando por sinal. Todos querendo que a mulher em que pensavam entrasse a qualquer momento, ligasse, vá lá, mandasse uma mensagem mas que pelamordedeos não se entregasse a um outro qualquer, que tomasse cuidado com o castelo em que um dia moraram e brincaram de rei.

Por que fora perguntar aquilo?, questionava-se Amanda que não estava arrependida de nada nessa vida, mas buscando tudo alucinadamente. Qualquer coisa. Muita coisa. Amanda queria desde um amor nível Lennon e Yoko a encontrar-se com ela mesma fazendo da solidão um luxo.

Como animar a mesa depois que o pretérito imperfeito e o futuro desse presente havia se instaurado entre eles? De repente, ocorreu-lhe uma ideia que fizeram todos andarem de bicicleta na chuva. Olhou para os três amigos e super animada perguntou:

– Há trinta anos atrás, o que vocês gostavam de fazer? Como estavam nessa época?

Ora, todos sorriram com um olhar de menino. Bola de gude, pelada na rua, praia, pipa, matar aula, carrinhos, helicópteros, cataventos, avós, chinelada de mãe, coleção de figurinhas, fogueira de São João,…

– Eu acertava pardais com estilingue!

– Roubava pra cacete no jogo do bafo!

– Fui medalhista três vezes seguidas em corrida do saco!

Riam-se tanto que os que estavam na mesa ao lado foram contagiados e começaram a gargalhar também assim do nada.

Todos salvos pela infância.

Que Vídeo?

Eu sendo entrevistada por um jornal:

– E aquele vídeo? – perguntou o repórter.
– Que vídeo? – perguntei ao repórter.
– O que você aparece cantando…
– Eu estou dublando só. Mas o que tem ele?
– Seus alunos viram?
– Devem ter visto.
– E o que isso afeta em sua aula?
– Nada.
– Mas o que os alunos acham?
– Pergunte para eles.
– E a sua moral?
– Vai bem obrigada.
– Mas ela não é afetada em sala de aula?
– Por que seria?
– Por causa do vídeo.
– Que vídeo?
– O que você cant… dubla.
– E por que eu ficaria desmoralizada?
– Seus alunos te levam a sério?
– Por que não levariam?
– Por causa do vídeo.
– Que vídeo?
– Aquel…
– Você sabia que eu escrevo crônicas? Não acha melhor perguntar sobre elas?
– As crônicas são ousadas?
– Muitas parecem que sim.
– Como o vídeo?
– Que vídeo???

Mas gente… Eu toda hora pensando que acharam alguma sósia minha em um filme pornô…. O cara estava muito chocado.

Enfim, mais uma entrevista que não vai ao ar.

Jogo do Bicho

Lk e Yuki

Acabei de ler para o Yuki Fábulas de Monteiro Lobato. Meu caçula de nove anos ficou triste como ficamos ao terminar uma deliciosa viagem. Na tentativa de resgatar o humor dele, propus um jogo que chamei de Jogo do Bicho.

– Seguinte, meu filho, eu falo um bicho e você o descreve para mim e vice versa, valeu? Três, dois, um… avestruz!

– É o bicho que come de tudo. Igual a você. Agora eu:Borboleta!

– Pisca com as asas como as pálpebras quando estamos apaixonados. Algumas moças se comparam a elas. Grande injustiça com as borboletas. Cigarra!

– São artistas. Tudo gente boa. Mas quem escreveu as fábulas não curte muito o estilo musical delas. Cegonha!

– Cegonha…ih coitada. Pagam pelo crime que não cometeram. Muita gente põe culpa na Cegonha… Touro!

– É um boi com um quê a mais. Tipo mais feliz ou mais completo. Sei lá. Parece mais macho mas também tem mais chifre…

– Faz sentido, meu filho… jacaré!

– Sorriem como sorriem os ladrões. Dragão!

– Dragão não é bicho, Yuki. Nem tem nas fábulas. Mas vamos lá. É um bicho inventado e completamente desmoralizado por São Jorge. Girafa!

– Não existe.

– Como não, Yuki? Você já viu no zoológico até!

– Não acreditei que fosse real. Não existe. Peru!

– Primo pobre do pavão. Essa foi mole.Elefante!

– Gigante. Como você, mãe.

A brincadeira acabou porque não dá para falar e beijar ao mesmo tempo.

Yukiblog