Nomofobia

nomofobia

Oi, gente. Meu nome é Elika, mas aqui me chamem de Gilda, por favor. Tenho 42 anos, três filhos e um testemunho a dar.

Hoje, depois de muito protelar, coloquei meu celular no conserto. O GPS dele estava pifando, ficava intermitente. O Eduardo, o moço do waze que me fala para onde devo ir, engasgava justamente nas bifurcações. O aplicativo Endomondo que uso para correr e que fica me informando a quilometragem e a minha velocidade a cada cinco minutos falava só quando queria. Daí, de repente eu que tenho como meta correr 5 quilômetros duas vezes na semana até morrer poderia estar correndo 5,3km, por exemplo, e isso é simplesmente inadmissível para mim. Não quero deixar a meta aberta e muito menos dobrar a meta. Nem passar um metro da meta. A meta já me mata.

Ao chegar na Assistência Técnica, a moça pegou meu celular. Fez-me algumas perguntas do protocolo. Abriu meu filho querido bem na minha frente. Arrancou-lhe a memória e o chip. Entregou-os para mim e disse assim na lata super fria e sem o menor sentimento:

– 5 a 20 dias úteis.

Como é que é, minha gente? Pensei que fosse consertar ali na hora, no máximo pegar no dia seguinte… Cinco dias sem celular? Ou vinte? Como vou viver? Quem vai me lembrar dos meus compromissos? Quem vai me acordar? Vou perder todas as fofocas no grupo do whatsapp… E-mails importantes, notificações de comentários em minhas postagens… como vou ler Carta Capital? Como meus filhos vão me localizar se tiverem morrido? E se a luz da casa acabar, como vou andar no escuro sem a minha super lanterna? Como vou me comportar numa mesa de bar com os amigos sem poder mostrar para os outros que não estão ali como estou super me divertindo? E quando eu me achar linda ao olhar no retrovisor no meio do mó engarrafamento e quiser tirar uma selfie? Como faço, gente?

Dirão muitos de vocês que vai ser bom e não duvido que me venham com aquele discurso que todo mundo hoje só sabe olhar no celular e coisa e tal. Vão dizer que vou descobrir como me relacionar de verdade com as pessoas e bababá bububú. Bah. Eu me relaciono giga bem com as pessoas de qualquer jeito. Olhando no olho ou olhando pra tela e, as vezes, com um olho no olho da pessoa que está na minha frente e o outro virado para a tela. Tipo Cerveró. Super dou conta.

Mas, vá lá, tenho percebido que as minhas leituras dos livros de literatura caíram vertiginosamente. Por exemplo, com essas manifestações que foram a bola da vez, fiquei hiper ansiosa em saber se estava perdendo alguma coisa, lia tudo o que me aparecia pela frente para não falar bobagem e mal consegui me fixar por mais de dez minutos no alfarrábio aberto. De repente, agora, retomo a concentração e permito-me uma honesta viagem como há tempos não tenho feito na minha biblioteca. Pode ser. Vamos tentar. Força, Elika… e assim pensando voltei para o carro deixando naquele lugar frio meu filho lobotomizado.

Mal entro no takimóvel, procuro o aparelho do diabo. Estava doida para ligar para a mamãe para reclamar que ia ficar sem celular por um bom tempo. No primeiro sinal vermelho, busquei-o de novo para avisar a todos os grupos do whats que ficaria fora do ar por uma eternidade e para não ficarem preocupados porque, claro, vão sentir muito a minha falta e mal saberão viver sem mim.

Ao pegar somente a capa da criança, toda mole sem nada dentro que me conecte com o outro mundo, acabei botando o meu CD preferido do Fábio Júnior que me acalma a vera sempre. E cantei. Cantei As Metades da Laranja em volume máximo com os braços esticados para o teto balançando de um lado para o outro. Olhei para a minha direita bem no refrão e o moço todo cheiroso de blusa branca em um Eco Sport sorriu para mim. Pediu meu celular fazendo um gesto dobrando os três dedos do meio deixando o mindinho na altura da boca e o polegar perto da zoreia. Eu comecei a chorar ao lembrar do bichinho e, depois, com os zóio arregalado pro moço desatei a  coçar o pescoço fortemente com as unhas me deixando cheia de marcas vermelhas. No sinal verde, ele engatou a primeira e se foi na velocidade da luz.

E assim foi meu primeiro dia. Como meu amigo ali cheio de tiques falou, um dia de cada vez.

Obrigada por me receberem nesse grupo dos Celulacólotras Anônimos.

Até a próxima.

Sobre Baleias e Peixinhos.

baleia

O fotógrafo americano Eric Smith registrou um momento nada raro hoje em dia: uma baleia passando ao lado de homem sem que este a percebesse por estar de olho no celular. Diria você que isso não é comum e até mesmo por ser tão ímpar um momento como esse, a fotografia ganhou destaque nos grandes jornais do mundo. Se tomarmos aqui a baleia no sentido metafórico, como assim foi feita pela maioria das redações dos jornais que comentam o retrato, e associá-la a grandes fenômenos que acontecem à nossa volta enquanto estamos mandando mensagens no WhatsApp ou conferindo as atualizações dos amigos no Facebook é fácil entender que a imagem desse homem em seu veleiro sem se dar conta da baleia que tangencia o seu barco retrata o nosso cotidiano.

Todos já devem ter se deparado com vídeos e textos comentando o quanto as pessoas viciadas em celular deixam de dar atenção para quem está ao  lado. Não vou dissertar sobre isso fazendo coro a todos que criticaram o coitado que não viu a baleia. Primeiro que todos que o fizeram, em sua grande maioria, certamente usaram o próprio celular para atirar a pedra  (tal como aqueles que postam textos falando mal de haloween (a favor do dia no Saci, figura típica da cultura brasileira) confortavelmente de seu aifone). O próprio fotógrafo foi bem rápido em postar a imagem capturada no seu Instagram para criticar o modelo imerso em seu smartphone. Quem lhe garante que não passou outra jubarte ou algo que o valha ao lado do retratista neste momento?

Pergunto-me, por outro viés, a despeito de ser meu sonho ver esse enorme mamífero pessoalmente, se vê-lo faria do homem um ser mais sensível. Estou lendo um livro que aborda o tema do comércio na época da escravidão que acaba descrevendo todas as rotas marítimas utilizadas pelos senhores de escravos. Navio vem, navio vai, muitos homens começaram a observar baleias no mar e rapidamente se perguntaram o que poderiam fazer também com esse bichos para obter lucro. Na mesma época em que negros eram escravizados, surgiu no mundo assim, um mercado que fomentava a caça às baleias. Navios, armas de vários outros tipos, redes, arpões, guindastes eram manufaturados e vendidos para alimentar essa ideia. Até hoje, os japoneses, para citar um outro exemplo, na famosa enseada de Taiji (digitem no gúgol e vejam rapidamente as fortes imagens) chegam a mudar a cor de parte do mar ao matarem diversos golfinhos para seguir uma estúpida tradição. Enfim, o que estou querendo dizer é que ver jubartes, orcas, golfinhos e araras azuis não nos fazem mais sensíveis se não temos capacidade e se não estivermos preparados para sentir determinada emoção. Se formos metaforizar os bichos, pergunto-me quantos vezes nos deparamos com baleias sem que percebamos a beleza do fenômeno não porque estivéssemos focados no celular ou algo que o valha, não porque não estivéssemos olhando para o mar e sim porque algo dentro de nós não permitiu simplesmente chamar aquilo de belo.

No mais, uma outra observação: antes dos smarts, dos celulares que só eram usados para falar, dos telefones fixos e da televisão surgiu a escrita e pessoas que começaram a se ocupar dela. Tanto escrevendo mesmo quanto lendo. Lá pelos idos antes de Cristo, na Grécia, já havia quem criticasse os papiros por afastar a necessidade da presença do corpo nos processos comunicacionais. Por que ir até lá se posso mandar uma carta?  Eu, leitora ávida e por livros de literatura viciada, não raro me isolo para matar a sede pela palavra impressa e, por isso, perdi as vezes em que fui chamada de anti-social. Os alfarrábios eram um veneno para a memória, alertavam os críticos de plantão lá na Grécia antiga. Ninguém precisaria guardar mais nada, nenhum verso, nenhuma poesia, pois estava escrito. Com o exercício da leitura, há uma separação do conhecedor e do objeto conhecido e que perigo isso para a humanidade!, bradavam alguns homens nessa época.

Depois, muito depois, veio o telefone fixo, as cabines, os orelhões que nitidamente buscavam isolar quem do uso deles usufruísse. Pronto. Mais críticas de como estávamos sendo anti-sociais e dá-lhe mais alertas do mal que estamos fazendo com o amigo desprezado que está ao lado. Hoje em dia, não precisamos mais nos isolar. É possível você ouvir uma conversa romântica de um desconhecido que fala no celular ao andar de transporte público, mas ainda assim somos acusados de andarmos distantes de quem está próximo. Quanto ao televisor, nem vamos comentar. O que havia de psicólogos fazendo terrorismo com o fato de ficarmos todos calados olhando para uma telinha não está no gibi… Era o fim do diálogo entre os membros de uma família desde o televisor preto e branco.

Fato é que, mesmo sem dar atenção a quem estava ao nosso lado, em todos esse casos havia sempre uma interação entre pelo menos duas pessoas. Quando lemos um livro, por exemplo, nunca estamos sozinhos, nenhum leitor jamais reclamou de solidão tendo uma boa obra em mãos. E já analisando diretamente os dias de hoje, pergunto-me quantas baleias não vimos dentro do nosso celular. Quantos amores existem graças ao fato dessa engenhoca fazer parte de nossas vidas? Quantos deixaram de existir quando a comunicação era somente feita a pouca distância? Revidará você: e quantos casamentos terminaram por causa disso? Aceito a pergunta, mas não sem antes me questionar se foi o aparelho de celular que separou, de fato, o casal.

Bom, o que estou querendo com toda essa explanação, para quem ainda não me entendeu, é perguntar se é assim tão fácil fazer um julgamento sobre o registro de Eric Smith, ou seja, sobre como estamos nos comportando.

E, permitam-me uma última observação. Se pensarmos ainda mais um pouco, nem era preciso baleia nenhuma passar e deixar o moço sair, abusando do trocadilho, tão ruim na foto. Para os sensíveis, os sensíveis de verdade mesmo, basta ver com bastante atenção um peixinho ou o próprio mar sem que nada se mexa além das ondas e a vida já passa a ter muito o que comemorar.