Oi?

coragem1

Muitos não sabem, mas eu sou uma deficiente auditiva. Já uso próteses há três anos. Quer dizer, já ‘tenho’ as próteses há três anos. Meu problema é genético, não há o que fazer. Ladeira abaixo sempre e cada vez mais rápido. Estou caminhando a passos largos para ficar surda.

As próteses auditivas nada têm a ver com óculos. Quando eu os coloco (tenho sete graus de miopia (sim, deus me carimbou de várias formas), eu enxergo tudo como qualquer pessoa sem problema de vista enxerga. Fica perfeito. Com as próteses é muito diferente… As pessoas que não têm problemas auditivos ouvem em infinitas frequências. Eu, por exemplo, perdi muito nos agudos. O grave ainda ouço quase que perfeitamente. Mas as próteses não possuem ainda essa variação de frequências e amplificam quase tudo… se passar um caminhão na rua e eu estiver com os aparelhos, parece que um helicóptero entrou na minha cabeça. É um inferno. As vozes ficam todas microfonadas, nada natural… Quando as tiro dos meus ouvidos, sinto sempre um alívio como quem tira um sapato apertado.

Neste ano, apresentei-me para meus alunos abrindo o jogo:

– Bom dia. Meu nome é Elika. Sou a professora de física de vocês e tenho deficiências. A pior é a auditiva. Tentarei usar as próteses quando estiver com vocês, mas as vezes, dependendo do dia, chegarei em sala sem elas porque elas me cansam demais. Esse barulhinho do ar condicionado que vocês estão ouvindo, para mim, é um liquidificador em funcionamento. Se alguém me chamar e eu não ouvir, não é nada pessoal. É porque não ouço mesmo. E mesmo que eu esteja com as próteses, pode ser que eu não ouça alguém me chamar porque eu tenho deficiência de atenção também… Então, peço a vocês paciência comigo…

Os alunos ficaram em silêncio observando. Não sei o que pensaram, mas a reação deles me surpreendeu. Talvez tenham sentido pena de mim. Estou percebendo cada dia que passa que estou piorando. Já andei procurando curso de libras para meus filhos e eu fazermos e ir nos preparando para o futuro. Talvez esse ano, aprenderemos todos a língua de sinais.

Não é preciso ter pena de mim como, talvez, os meus alunos tiveram. As vezes, como gosto de ler, isso me ajuda a concentrar. Idem com o ato de escrever. Tem lá suas vantagens por incrível que pareça…

A luta é para não me isolar por isso. Pesquisas mostram que o deficiente físico que mais se afasta da convivência com os outros – por causa do problema – é o surdo. Quando estou em um ambiente ruidoso, posso me apresentar meio perdida. E é porque estou mesmo… estou lutando dentro de mim para não ir embora correndo. E dói quando alguém ri por algo que eu tenha perdido ou entendido errado. Dói fundo. Mas eu perdôo porque a gente está aqui para perdoar mesmo.

Então, para você que convive comigo, peço um pouco de paciência. Na maioria das vezes, eu estou sem as próteses. Tenho usado essas porcarias somente em reuniões sérias. Usar no dia a dia é deprimente e por demais exaustivo. Vocês não têm ideia…

Não é preciso gritar caso eu não entenda algo que você tenha falado. Apenas olhe para mim e fale pausadamente. Fiquei mestre em leitura labial. E, se eu estiver olhando para os seus lábios fixamente, não é porque quero te tascar um beijo na boca. É porque ouço olhando agora. Mas se você for um inteligente e cheiroso e eu estiver olhando para a sua boca e começar a morder a minha e se eu começar a suar e mexer na orelha esquerda e jogar o cabelo para um lado e para o outro e rir que nem uma hiena nem precisa fazer curso de libras para entender o recado, ok? Se te interessar, basta dar um passo a frente.

Segue o barco.

2 comentários em “Oi?

  1. Nossa, como te entendo, mas só não tive coragem de contar pras pessoas. Inclusive ontem, fui à cabeleireira pra cortar o cabelo e disse que queria curto, mas que tampasse as orelhas, pois tenho vergonha e receio de como me verão depois da declaração.
    Mas não deixe de usar, facilita a vida, coloque no volume mínimo. E parabéns pela sua iniciativa de coragem, isso ainda é muito complicado pra mim. Beijos

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  2. Elika, (é sem acento?). Oi!
    Só para esclarecer, pretendo apenas trazer um relato e experiência que, se for útil, posso aprender/colaborar com outras pessoas. No final coloco, como referência, algumas explicações específicas do meu problema e outras mais gerais e também sobre a escolha dos aparelhos.
    OBS: desculpem o mix de tu e vc (do Rio Grande do Sul morando em SP)

    Cláudia, não sinta vergonha e não se intimide.
    Vibre com a alegria que é poder ouvir novamente.
    Comemora com as pessoas que te amam de verdade e … bem …, “sinta muito” pelas que ainda “não conseguem” perceber a tua felicidade.
    Mas, hoje em dia, alguns modelos tem cores variadas e mais aparência de acessórios do que “próteses”.

    Eu comecei a perceber minha dificuldade auditiva por volta de 1997, quando encontrei um anúncio de audiometria grátis e fui conferir.
    Naquele dia tive uma experiência de alegria intensa por alguns minutos quando a fono ajustou um par de aparelhos digitais com a curva da audiometria e os colocou nas minhas orelhas: ouvir carros ao longe e entender a pessoa sem olhar nos lábios, foi magnífico (não estava em uma floresta para entrar em êxtase). Eu vinha perdendo os agudos desde antes e não sabia. As reuniões com mais de uma pessoa eram impossíveis. Essa perda mata as consoantes e, com isso, o entendimento das palavras (a minha perda começava em 1000Hz e já está em 100Hz). E eu ouvia até tique-taque de relógio “suíço” de pulso sem muito esforço.
    Fiquei até o final do ano passado (mais de 15 anos) num processo de “desvocabularização” involuntáiria associado a uma ocultação de memórias por proteção sentimental relativo a outras questões.
    Mas sempre procurei ter consciência de não cair num processo de vitimização (do tipo: “porque eu?”). Tem o problema – vai procurar ajuda, se não dá para resolver por conta. Foram muitos anos de pesquisa e tentativas de solução.
    O maior impedimento que encontrei, a partir 2013, depois de muito aprendizado (sem solução) sobre o meu tipo de surdez (hiperacusia, zumbido 24×7 superável em volume apenas por uma sirene de alarme e uma sensação crescente de isolamento social), foi descobrir que os aparelhos que me auxiliariam a contornar o mencionado acima custavam o valor de um carro popular (o par).
    Uma fono de uma das marcas testadas me disse que o Banco do Brasil disponibilizava uma linha de crédito a juros muito baixos e parcelado a perder de vista para “deficientes” (a lista de possibilidades é gigante). Mas só tinha um problema: teria de encontrar uma fonte de renda adicional para bancar em torno de R$ 400,00 mensais por 4 anos.
    Finalmente, em setembro do ano passado um amigo (cliente de TI) com o qual passei a ter várias participações, ofereceu custear os aparelhos.
    A partir daí, bem, … não diria que o céu passou a ser o meu limite, mas dá para dizer que passei a enxergar o céu (com todas as suas alternâncias – mas visível).
    Não conseguia frequentar cursos de aperfeiçoamento na minha área, pois ficava, literalmente, boiando. Este ano já estou inscrito em uma pós em TI me preparando para ampliar o meu trabalho e possibilitar trazer outras pessoas para trabalhar junto (agora posso entender as pessoas).
    Ainda estou em processo de retreinamento cerebral, revocabularização e adaptação pois desaprendi, se é que sabia, a focar em quem preciso ouvir em meio a outros falantes (restaurantes e afins é outra etapa) e interpretar murmúrios enrolados das pessoas que sofrem com a perda do tônus bucal e do diafragma nesse processo constante de busca pela facilidade mastigatória (antes fosse felicidade) industrializada (nada contra) e vida sedentária e que não conseguem nem respirar direito (livre arbítrio – será?).

    Observações que constatei e que são diferentes para cada um:
    – Hiperacusia: acuidade auditiva exacerbada, com audição dolorosa de certos sons (sobretudo os agudos) – meu caso;
    – Zumbido: vários tipos – o meu é agudo, bem alto e não desliga – 24x7x365 = 24 horas, sete dias da semana e 365 dias no ano (termo empregado em TI para dizer “sem descanso”). Descobri que me “acostumei” a isso (em consultas aos sites de fabricantes e afins);
    – Definição técnica do especialista: é sempre diferente da percepção do “atingido” – ouvir mais de dois especialistas na área e perguntar bastante – não se restringir às fonoaudiólogas dos fabricantes; terminologias distintas podem significar a “mesma” coisa (ou parecida – é o marketing) entre fabricantes diferentes.
    Aparelhos mais caros têm uma calibração mais fina e mais recursos para auxiliar em situações mais complexas (no consultório tudo é maravilhosamente perfeito – o problema é lá fora).
    Ex: cada vez que o meu cachorrinho late é como se levasse um tapa na orelha (o cachorrinho é um pastor alemão). Deixo o meu (aparelho) em um programa que corta impactos sonoros imprevistos e ainda preciso melhorar.
    – Acessórios e conectividade – é diferente em todas as marcas – não há convergência e precisa ver o que é mais útil. No meu caso preferi a Resound que conecta direto com iPhone e por um “Phone clip” levíssimo com celulares Android; tem um microfone também muito leve que posso deixar com o professor ou palestrante e aciono pelo controle remoto que é prático, leve e a bateria dura semanas (a bateria dos aparelhos é outra questão importante).
    – Qualidade do áudio – meu pai não gostou do Resound porque achou muito metálico e optou por um Siemens, mas a conectividade da Siemens era problemática comparada com a usabilidade do Resound. A Phonak tem uma qualidade muito boa, mas é pior ainda na conectividade: tem que colocar um colar em volta do pescoço com um acessório para poder falar ao celular (inviável para mim que falo muito ao celular em diversos tipos de ambientes e temperaturas).
    Espero ter ajudado apesar do excesso de texto (desculpem-me, e, se tiver algo que possamos “conversar” sobre, estou à disposição – e tem muita coisa).

    Elika, conhecer vc neste momento da minha vida tornou-se o meu “Ponto de Mutação”. Foi bem mais do que um gratificante acaso. (apaguei pq estava estendendo fora do assunto – grato, sempre)
    (Fritjof Capra – tenho e não lembro do que li – preciso encontrar e reler).

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