Jardim sem borboletas

Tenho pavor de joaninha, me arrepio quando vejo borboletas, entro em desespero se me deparo com besouros. Qualquer inseto que faça zzzzzz me faz ver a morte. Já saí de um carro em movimento por conta de um percevejo. Desse jeito.

Muitos adultos já riram de mim e jogaram bichos em minha direção para me assustar e rir depois da minha reação. Outros, de forma completamente ineficaz, tentaram colocar insetos em minha mão à força para eu ver que eles não fazem mal algum.

Sei que há insetos que só existem para as flores e são cegos para mim. Porém, se nós fôssemos racionais de verdade, não beberíamos refrigerantes, não comeríamos enlatados, não fumaríamos, não andaríamos de moto e nem votaríamos em candidato declaradamente homofóbico e racista. Ou seja, não é nada que se combata com explicação porque dolorosamente eu sei. Apenas não tenho capacidade de aplicar determinados conhecimentos em mim mesma assim como agem os alcoólatras e os apaixonados.

Tenho uma história para contar para vocês. Eu havia me esquecido dela por muito tempo. Esse fato foi resgatado quando alguém me viu brincando com uma lagartixa.

– Como assim você não tem medo dessa coisa gelada e não gosta de joaninhas?

A pergunta me pegou de surpresa porque, de fato, pensando bem, não fazia sentido algum.

– Você tem medo de aranhas?, insistiu a pessoa atenta a mim.

Não. Tenho medo de baratas e besouros. Tenho respeito pelas aranhas. Mas medo definitivamente não. Adoro as lagartixas.

Até eu achei tudo estranho olhando por aquele ângulo. Revirando o meu baú com um giga cuidado, encontrei algo que estava muito bem escondido em mim.

Passei parte de minha infância em Minas pois mamãe é de lá. Finais de semana, feriados e férias sempre íamos para alguma roça. Eu tinha oito anos quando ocorreu o que vou narrar agora.

Era comum os primos todos se juntarem para brincar. Mamãe teve quinze irmãos e por aí vocês imaginam a quantidade de primos que tenho pelo mundo hoje e que, na época, eu tinha por lá. Mais precisamente em Itajubá. Era criança que não acabava mais.

Houve um dia em que estávamos numa fazenda. Eu vestia uma blusa de lã com gola alta e uma jardineira por cima. A roupa é muito importante nessa história e adiante vocês saberão por quê.

No final da tarde, um rapaz que trabalhava nessa roça da tia disse que ia colocar as vacas para irem pastar no morro e perguntou quem queria ir com ele e com as mimosas. A criançada toda, rapidamente, levantou a mão gritando: eu eu eu! e lá fomos nós morro acima.

O rapaz ia na frente e atrás dele uma dúzia de vacas. Andávamos pela estrada estreita de terra no meio do mato um pouco alto. Eu era a primeira criança atrás da última vaca e depois de mim deviam ter uns oito primos. Era um trenzinho de gado e de gente. Um atrás do outro – mesmo porque não havia espaço para ninguém andar de mãos dadas lado a lado.

Lembro-me do quanto eu estava encantada com o movimento do rabo da vaca que parecia um pêndulo perfeito. Na posição mais alta, a extremidade do rabo se enrolava numa espiral. Depois se desenrolava e fazia o movimento no outro sentido. Espelhado, simétrico, lento, perfeito. Hipnotizador.

Eu subia o morro distraída com as badaladas de um rabo bovino que não sabia o que era pressa.

Até que o primeiro vagão daquela locomotiva passou por debaixo de uma árvore baixa cujas folhas faziam cócegas nas costas das malhadas.

Rabo vem.

Rabo vai.

Rabo vem.

Rabo vai.

Quando a “minha vaca” passou pela árvore com aquele rabo lentamente inquieto, numa balançada bem dada, ricocheteou uma casa de abelhas que caiu em cheio bem na minha frente.

De repente, o céu ficou escuro.

Comecei a gritar.

Até que a última criança entendesse que tinha que descer o morro correndo, as abelhas entraram literalmente no meu corpo. Além da minha roupa que fagocitava aqueles insetos raivosos, a cada grito de dor, entravam abelhas pela minha garganta.

Quando enfim consegui ver minha mãe de perto que, a princípio, achou que era brincadeira aquele bando de crianças correndo e gritando, ela me pegou rápido e  me colocou debaixo do chuveiro frio com roupa e tudo. Recordo-me bem de ela passando pente no meu cabelo com força e o chão ficando chamuscado de abelhas que ela matava pisando.

Saí dali e fui direto para o hospital. E me esqueci de todo o resto. Acho que desmaiei. Quando acordei não abri os olhos porque não conseguia. Eles estavam inchados demais. Tive febre e as dores custaram muito a passar.

Seguramente, poderia ter morrido.

O tempo passou. E havia me esquecido por completo dessa história. Só me restava o trauma que está aí no mundo para zuretar com nossas vidas. Ao ouvir ou imaginar qualquer barulho de asas de algum inseto, meu corpo trava, meus músculos se contraem e a garganta ameaça a fechar. Tenho um tipo de cognição corpórea. Minha pele faz essa associação porque possui uma história.

Ainda que não me lembrasse desse episódio, sempre que vi alguém com medo de alguma coisa (qualquer coisa), respeitei. Dentro de mim, sabia que todos têm seus motivos para não viver adequadamente. Nem perguntei nunca o motivo do assombramento da pessoa (que, para mim, não fazia o menor sentido).

Rejeitei todos os conselhos de “me tratar”. Meu medo só incomoda a quem quer que eu seja de um determinado modo. Particularmente, não me importo com a minha falta de jeito de interagir com os insetos a despeito de sofrer, desnecessariamente, em muitas ocasiões. Como disse Clarice, a gente nunca sabe qual defeito que sustenta todo esse edifício.

No meu jardim, não há joaninhas e borboletas. Ainda assim meu deus. Como eu amo a primavera.

 


Texto dedicado a Maria Eduarda, uma menininha linda que me pediu para lhe contar uma história. Após ouvir essa com todos os detalhes mais caras e bocas de dor, disse que eu merecia ganhar mil reais por ela. 🙂 Como elogio de criança é o que há, resolvi escrever. Vai que alguém me pague por isso…

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