“Menino veste azul, menina veste rosa”, esta foi a frase proferida pela nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que anunciou uma nova era para o Brasil escancarando a sua principal preocupação. Não tardou para que memes, piadas e comentários pipocassem em todas as redes. Imediata também foi a reação de quem elegeu Bolsonaro: replicaram nosso deboche e nossa revolta “explicando” que “não é para ser entendida ao pé da letra a frase da ministra já que se trata de uma figura de linguagem”. Como se não tivéssemos entendido… E exatamente por sabermos o que Damares quis dizer, ficamos perplexos com a proposição feita em pleno século 21 onde temos estudos e mais estudos sérios sobre gênero.
Muitos que aplaudem Damares não lerão até o final, pois acham que debater o conceito de gênero é fazer “doutrinação homossexual” (pasmem, eles estão usando esse termo).
Para começar, preciso dizer o quanto fico triste em ver uma ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos apontar que sua maior preocupação é com esse tema e não com as taxas de violência e mortalidade em nosso país. Tivemos que cunhar a palavra feminicídio para dar conta da nossa realidade, somos a sociedade que mais mata LGBTs no mundo, há famílias inteiras morando nas ruas, a pobreza voltou a aumentar…, mas isso não entrou no discurso de Damares como prioridade.
Vamos discutir, porém, “a nova era” apresentada pela ministra. Ela quis dizer com a frase “menino veste azul, menina veste rosa” que há “coisas de menino” e “coisas de menina” contrariando pesquisas com rigor acadêmico sobre o tema.
A Natureza fez com que homens e mulheres se sentissem atraídos uns pelos outros, umas pelas outras, uns pelas outras e deu a nós algumas tantas possibilidades. A biologia nos dá um leque de opções. Algumas religiões e mitos permitem somente uma dizendo que todo o resto “não é natural”. Ora, tudo o que sentimos não é natural? Há alguma lei nos proibindo de sentir fome, de sentir sede, de sentir dor quando batemos o pé em uma pedra…? Por que tem que haver lei proibindo seres humanos de sentir prazer se esse sentimento não trouxer nenhum dano para as pessoas envolvidas?
De forma bem simples e resumida (sem levar em consideração outras questões pertinentes), biologicamente os seres humanos estão divididos entre sexo masculino e feminino e isso tem a ver com ter ou não o cromossomo Y. Mas o conceito de “homem” e de “mulher” são construídos socialmente e não tem nada a ver com nossas células.
Já ouvi por aí que as mulheres devem se submeter aos homens, pois estes são mais fortes e mais preparados para lidar com adversidades. Mais uma vez, historicamente e biologicamente isso não se sustenta. Mulheres são mais resistentes a fome e a doenças e há muitas com mais força do que vários homens. No mais, se o problema fosse a força, tarefas que não exigem força muscular deveriam ser permitidas desde sempre para as mulheres como cargos políticos e o sacerdócio, por exemplo.
Existem muitas espécies de animais que são “matriarcais” pois as fêmeas desenvolveram redes sociais que ajudam cada um dos membros a cuidar de seus filhotes. Os machos ficam lutando entre si e suas habilidades sociais são relativamente menos desenvolvidas. A origem do patriarcado em nossa sociedade é controversa e inconclusa, porém, é fato que durante o último século os papéis sociais de gênero passaram por mudanças consideráveis. Direitos políticos, status jurídico e tratamento igual são coisas que tornam a discussão de gênero urgente já que o sistema patriarcal se baseou não em fatos biológicos e sim de mentiras infundadas principalmente vindas da teologia cristã.
De uma forma mais clara e didática: “menino veste azul, menina veste rosa” sinaliza que brinquedos como kits de cozinha e de limpeza são para elas; carrinhos, jogos de lógica e ciência e bola para eles. Ou seja, temos um universo restrito à vida doméstica para as meninas, enquanto os “que vestem azul” são incentivados a desenvolver um comportamento aventureiro, de liberdade de escolha e de pensamento.
Dados científicos já mostraram que até os dois anos de idade são formadas as mais importantes conexões neurais de uma pessoa. Por isso, é fato que os estímulos oferecidos aos bebês e crianças pequenas são capazes de direcionar seus interesses até o fim da vida.
É extremamente negativo para o desenvolvimento da criança seguir a raiz social de ideias que concebe que a mulher seja diferente do homem desde a infância, em relação a obrigação, direitos e competências, porque isso vai determinar a conduta, os valores e os preconceitos que refletirão nas ações desse ser na sociedade. Uma determinação social forjada encaminha a mulher para alguns perfis e o homem para outros.
Observe como a história é contada e como nos tornamos marionetes desse sistema. Os costumes, as relações e os valores que são produtos culturais (construídos e, portanto, passíveis de serem desconstruídos) foram naturalizados nos livros, nos filmes, nos discursos e na linguagem. Ficamos reproduzindo estereótipos de “coisa de menino” e “coisa de menina”, valorizando (sem sentir) a hierarquia de gênero e subestimando a capacidade das pessoas de exercerem tarefas que não são adequadas “ao seu gênero”.
Qual a melhor forma de evitar que meninas e meninos sejam estimulados de formas diferentes durante a infância e cada um descubra por si suas próprias habilidades e competências? Fazendo justamente o oposto que a nova ministra prega. É possível ensinar crianças a mandar essa lógica desigual às favas, policiando a linguagem e apresentando a elas outras possibilidades para além da reprodução de papéis de gênero.
Como já dito, a igualdade de tratamento e de oportunidade entre meninos e meninas é fundamental na medida em que as escolhas profissionais vão sendo concebidas a partir das brincadeiras e das relações estabelecidas no meio social. Sugiro que a nova ministra veja dados sobre a quantidade de mulheres ocupando cargos de chefia, presentes na política e na ciência e que pense na causa desses números tão desiguais.
Termino insistindo na pergunta: Damares, em que medida teimar com essa divisão de comportamento entre meninos e meninas vai diminuir os índices de violência e tornar os percentuais mais igualitários e justos para “os que vestem azul e as que vestem rosa” nas empresas, nas câmaras, nos congressos e até mesmo nas Igrejas?
Excelente texto.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Não seria mais temeroso que seu discurso desviasse de sua conduta de vida arraigada, cruel e separatista ? Cara Elika ela se tornou ministra por ser quem é e por reverberar o pensamento de quem elegeu seu presidente. Magno Malta foi cotado para tal “papel” porém seu currículo não foi aprovado. Ela como peça do Magno se encaixou melhor . Precisamos usar outras armas, precisamos levantar nossos representantes, você é inspiradora e tem essa capacidade . Se formos tão dedicados, sistemáticos e fiéis teremos você ministra um dia . Ou quem sabe presidenta.
CurtirCurtir
Perfeito!
CurtirCurtir