“Nem terminou a marmita”

Li, há tempos, o livro “O Último Trem de Hiroshima” de Charles Pellegrino. Qualquer relato sobre a bomba atômica que conte como a população civil foi alvejada é por demais inesquecível. Neste livro, Pellegrino ouviu vários sobreviventes e registrou suas histórias. 

Há diversas imagens que jamais sairão da minha lembrança narradas por quem testemunhou ou sobreviveu a tanta dor. Uma cena, porém, volta com mais frequência tamanha é a estranheza, a intensidade e a realidade do gesto descrito.

Foi o caso de uma mãe que, sabendo da tragédia de que a bomba tinha sido lançada, correu sobrevivente, depois da explosão, em direção à escola para achar seu filho. 

Encontrou-o morto pelo caminho. 

Queimado. 

Antes de chorar, a mãe checou a lancheira de seu filho para ver se ele tinha se alimentado e, vendo-a vazia, sentiu-se consolada por milissegundos.

No mês passado, aconteceu uma história parecida, mas com outro cenário. A mãe de Gabriel Araújo, jovem negro de 19 anos morto a tiros em uma operação de combate ao tráfico de drogas da Polícia Civil no Morro do Piolho, na zona sul de São Paulo, ao ver a comida de Gabriel suja de sangue, lamentou “Nem terminou a marmita”, ao mesmo tempo que contestava a ação dos agentes no local.

A mãe de Gabriel não teve sequer o breve tempo de consolo que sentem as mães ao verem seus filhos alimentados.

São duas histórias que se cruzam na violência que deixa inúmeras mães órfãs e que nos mostram a intensidade do significado que tem, para as mães, ver um filho com fome. É algo que é capaz de aumentar o que já é por si insuportável: a perda eterna de apetite.

Pode ser cultural esse laço – e não institivo -, como dizem. Mas, uma vez feito, embrulha tudo.

E esse tudo é tanto que a morte do filho que não se alimentou tem, diante dessa unificação e de tantas tragédias, um outro sentido. Não sei se é passível de tradução, mas creio que valha saber, para quem lê este mundo, que essa dor, tão ímpar, também existe.

Um comentário em ““Nem terminou a marmita”

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