Não será desprezando os saberes que ensinaremos a valorizá-los

Foto ilustração por Doug Chayka.

Há, pelo Brasil afora, o debate sobre quando voltaremos às aulas presenciais. Antes de entrar no quando, pretendo debater o para quê.

Para que educamos, afinal?

A escola não pode ser um lugar que ensina injustiças. Existe a diferença de atitude e preocupação em relação às escolas privadas e públicas. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, o prefeito Crivella deu uma data, 3 de Agosto, para o retorno das aulas nas escolas privadas. Não temos previsão certa para escolas públicas e, dentro desse cenário, acho eu, quem for às aulas irá desaprender. Desaprender a ser justo. Desaprender como ser solidário. Desaprender a cuidar do próximo. Desaprender a ser gente.

Estamos lidando com crianças e jovens que, ainda que tivéssemos a certeza de que nenhum deles morreria mesmo que fosse contaminado, se tornarão vetores. Se queremos ensiná-los a ter sucesso, não podemos fazer isso navegando com eles em um oceano de miséria e num mar de mortos pedindo para que só olhem lá longe, que mirem somente o horizonte. Não lapidaremos um ser humano dessa forma e sim prepararemos mais um monstro para atuar com todo o seu egoísmo nesse universo.

Falamos muito das crianças e dos jovens. Mas precisamos falar com eles. Precisamos que eles saibam que não podem ser usados como ferramenta eleitoreira e que não há nada mais precioso do que existir. Entre voltar ou não a nos encontrarmos, precisamos, antes, confessar que não podemos e não sabemos mais como fazer. Nós, professores e professoras, que já demos tantas respostas, agora, estamos buscando por elas.

Em tempo algum, fomos explicados somente pela química, física, biologia ou pela matemática. Mas, mais do que nunca, precisamos da filosofia e da sociologia para conseguirmos avançar no mínimo entendimento do que vem a ser essa tal realidade.

Tenho formação em Filosofia e em Física.  Não considero a Física uma disciplina científica e sim uma indisciplina. Aprendi a ser rebelde estudando ciência, a não me contentar com respostas simples. Entendi que estudar a natureza é, antes de tudo, estudar como raciocinamos e as maneiras eficazes de lermos o mundo.

Uma das perguntas que me fazem com muita frequência é como eu concilio a Física com a Filosofia. A pergunta é interessante, mas mais curioso é pensar como surgiu a ideia de que esses dois saberes não conversam – se não se faz um sem a existência do outro. Não se estuda o átomo sem questionarmos a possibilidade de sermos feitos todos do mesmo tijolo.

Não existe conflito algum entre ciências exatas e humanas e sim preconceitos que foram semeados há anos e que fizeram da realidade um Frankenstein ao compartimentarem o que é uno em essência.  

Por que estou falando sobre isso? Porque a Escola sempre foi pensada e manipulada pelos poderes. Geralmente é gerida por administradores e não por educadores. Um dos poderes se chama mercado. E, dentro da escola, há conhecimentos que são mais valorizados do que outros, a meu ver, de forma muito equivocada. Não podemos desprezar a história e muito menos ensiná-la de forma presencial hoje se depreciamos, desrespeitamos, desconsideramos e subestimamos o que historiadores, sociólogos e filósofos têm escrito sobre essa pandemia. Não faz sentido ensinar sobre a natureza dentro de uma sala de aula desdenhando um vírus.

Se estamos aqui para estudarmos a realidade e o mundo, diante uma mudança radical que o coronavírus nos trouxe, precisamos repensar se queremos, de fato, educar ou nos convertermos em meros funcionários estúpidos e broncos desse laboratório gigante chamado Brasil. Não faz sentido cancelar o Reveillon e o Carnaval e querer que as aulas presenciais voltem.

Não existe conhecimento exterior e independente ao ser humano. O ambiente é múltiplo e tem conjunturas, conjecturas e relações diversas. Não é somente adquirir “conteúdo” de que o aluno necessita. Educação e sociedade são entidades que não se podem confundir, mas podem e devem morar na mesma casa e em todas as Escolas.

A atitude que tomarmos agora será escrita nos livros de história pelos quais seremos avaliados e estudados em um breve porvir. Gostaria, permito-me sonhar, que vivêssemos também para sermos registrados e virarmos palavras de um texto mais abrangente que é a nossa própria vida, a nossa própria biografia, a nossa própria história.

Estamos sendo apresentados a números e gráficos o tempo todo. Inclusive, prefeitos e governadores os usam para mostrar que estamos em condições de retomar nossa rotina aos poucos. Mas é necessário dizer que dentre os milhões de estudantes temos, por exemplo, a Natália, o Jorge, o Maurício, a Luana… que não são aquilo que cabe em sua carteira de estudante com um número de matrícula. Para além de número, têm nome, pensam, assimilam, observam e aprendem com exemplos. Ensinar a cidadania é mostrar a possibilidade de ser feliz e não há felicidade autêntica quando o sucesso de um depende do fracasso ou causa a morte do outro.

Entendo que muitos pais, mães e políticos estão preocupados em preparar os jovens para o futuro. Mas é necessário que ele exista para que seja vivido. Para sonharmos, fazermos planos e sermos aceitos pelo póstero não podemos nos exilar da atualidade.

Ouvimos que as escolas particulares têm condições financeiras de voltar e já vem negociando a volta com o poder público. Ainda que obedeçam às exigências sanitárias (o que é extremamente difícil beirando o impossível, dado o número de alunos e o tamanho das salas de aula) e que a volta “seja voluntária” como estão propondo (ou seja, faltas não serão computadas), pergunto-me se todas essas crianças irão de carro particular para as escolas. Se considerarmos que uma só pessoa use transporte público (que bem sabemos não há distanciamento seguro possível), como garantir a segurança de todos os demais?

De acordo com o prefeito do Rio, esse retorno seria facultativo a professores, funcionários e alunos que assim desejarem. Considerar essa possiblidade é esquecer por completo que vivemos em um país no qual as relações de trabalho que o capitalismo estabelece não são “facultativas”. Quando as atividades retornarem, nenhum professor, ou outro funcionário, terá a opção de escolher entre trabalhar ou não. O destino dos que optarem em continuar o isolamento, posso afirmar sem medo de errar, será o desemprego. No mais, como as escolas garantirão a equidade no ensino entre aqueles que decidiram voltar e os que preferiram ficar em casa?

A Fiocruz já se manifestou dizendo que o retorno às aulas presenciais neste momento é uma medida prematura e que a pandemia não está controlada. Para que vamos ensinar ciência presencialmente se desconsideramos o que ela tem nos falado? Como vamos mostrar a importância da biologia se desconsideramos a letalidade de um vírus? Como vamos ensinar a importância de saber fazer e ler os gráficos se desconsideramos o que nos são mostrados? Qual o sentido disso?

Voltaremos a nos ver em sala de aula quando esse encontro não tiver o peso da responsabilidade no aumento dos números de mortos.

Nós, professores e professoras, seguimos nos mobilizando e dando nossas aulas.

Sabemos que não será desprezando os saberes que ensinaremos a valorizá-los.

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