Taxonomia capciosa, indústria farmacêutica e tretas no Twitter. Minha modesta contribuição.

Com respeito a todas as partes no debate recente que vimos no Twitter sobre (o que é) Ciência que começou com a jornalista Cynara Menezes respondendo a uma publicação da cientista Natália Pasternack que, por sua vez, indignou-se com a Folha que divulgou a “Constelação Familiar” não alertando que se tratava de pseudociência, enfim, sobre esse “angú de caroço”, quero dar a minha contribuição porque acho que há verdades coexistindo. Se um lado está certo, não significa que o que pensa diferente está, necessariamente, errado. Cynara Menezes cobrou de Natália Pasternak o mesmo empenho que ela usou para falar contra as terapias alternativas para a indústria farmacêutica.

Pronto. Lá veio o tribunal do Twitter.

O assunto é delicado na medida que atualmente crer na medicina, à luz de tudo o que sabemos da indústria farmacêutica, seria a suprema loucura, se não confiar nela também não fosse uma loucura maior, dado todos os avanços que conhecemos.

Sabemos que nem todos os aspectos da sociedade industrial são maléficos. O desenvolvimento industrial, indubitavelmente, trouxe melhoras na expectativa de vida para uma classe privilegiada. Porém, nos locais onde temos miséria, não percebemos os benefícios de tantos avanços científicos. E isso não é um detalhe nesse debate complexo.

A solução para os problemas de saúde está longe de vir somente pela via da medicina. Precisamos considerar os fenômenos sócio-estruturais que afetam a nossa vida: a pobreza, as péssimas condições de trabalho, o estresse do tempo que perdemos indo trabalhar e a forma como nos alimentamos, para dar somente alguns exemplos.

Quantas descobertas médicas tiveram influência sobre o número de doenças causadas pela fome, pela falta de condições sanitárias e pela miséria? Problemas de saúde estão, em grande medida, conectados com direitos humanos, com a massificação da pobreza e com problemas de cidadania.

Ninguém aqui está negando o poder de um antibiótico ou de uma vacina para a diminuição da mortalidade e doenças infecciosas. Mas também podemos afirmar que a melhoria das condições de defesa do organismo se faz através de, por exemplo, uma nutrição melhor (com menos agrotóxicos e produtos industrializados) que é pouco debatida dentro de diversos consultórios (Por qual razão?).

Sabemos que a atenção médica é fundamental. Mas sabemos também que nossa saúde não melhorou com o aumento da quantidade de farmácias e das medicações que tomamos.

Caso tenhamos alguma emergência, uma dor aguda, um acidente grave, caso necessitemos de uma cirurgia ou soframos com o efeito de uma bactéria maligna em nosso corpo, a medicina será sim imprescindível.

No entanto, pela inexistência, em muitos cursos de medicina, do despertar da sensibilidade no futuro profissional de que assim como não existe uma divisão nítida entre o psicológico e o somático, tão pouco a vemos entre saúde e bem estar social, enfim, por essa carência de debate, o alcance da medicina, muitas vezes, é extremamente limitado e sua prática, a depender do profissional, até mesmo mais prejudica o paciente do que promove sua cura.

Para quem já conviveu com uma pessoa que cursa medicina, sabe que não é uma mentira que durante todo o treinamento, muitos estudantes passam a associar os sintomas e as doenças com o nome comercial de remédios. O gasto anual com o marketing dos produtos farmacêuticos que ocorre dentro das universidades e de consultórios não pode ser desconsiderado nesse debate.

Congressos científicos, auxílio em pesquisa, pagamento de passagens e estadias, brindes, assinaturas de revistas… tudo é feito para envolver profissionais de saúde em uma espécie de doutrinação.

Quem de nós sairia imune se submetidos ao bombardeio diário de propagandas feitas por pessoas de grande prestígio na área que estamos estudando? Vamos desconsiderar ou fingir que isso não acontece dentro das universidades?

Desde a graduação até a pós (que deve ser permanente para uma pessoa que trabalha ligada à ciência), a educação médica – não só no Brasil mas em outros países capitalistas – é de tal modo desvirtuada pelos fabricantes de produtos farmacêuticos e de outros instrumentos desse complexo industrial que cabem as perguntas: Como distinguir o que é pesquisa do que é publicidade? Como separar a Ciência do capital? Podemos falar em objetividade na Ciência se temos empresas envolvidas no resultado das pesquisas? Vamos negar que o mercado da Medicina é gigante e cativo? Em que medida não estamos sendo ludibriados com a falsa imagem de uma benevolência conspícua de produtos da indústria farmacêutica da mesma forma que a indústria de armamentos projeta uma falsa imagem de segurança para quem anda armado?

Apontar isso não é ser contra a Ciência. É defendê-la sem ingenuidade ou sem precisar flertar com uma linha filosófica chamada de positivismo. Posso ser contra o negacionismo sem ser uma positivista. E o problema dos debates rasos que as redes promovem é que se você não se enquadra em um conceito, por tabela, é definido por um outro que resta nessa esteira dicotômica em que digressões não são permitidas e os julgamentos são instantâneos.

Não podemos fechar os olhos que muitos enfoques dados aos problemas de saúde só beneficiam o complexo industrial de fármacos. Dito de outra forma, a estratégia desenvolvida para resolver problemas de saúde e a forma como esses são definidos constituem, em grande medida, um reflexo de como somos encarados por uma elite dominante. O profissional de saúde é, assim, um executor e não um criador dessas diretrizes como muitos acham que são.

O caminho da saúde da população não está, como diria um positivista, somente na Ciência – ainda que esta seja indispensável na discussão. Quantas tomadas de decisão sobre como, por exemplo, uma tecnologia deva ser aplicada e difundida são influenciadas por uma consciência das necessidades coletivas? Sabemos que muitas decisões são ditadas pelo critério de lucratividade. Quantas indústrias de drogas têm ambição de produzir remédios que não sejam lucrativos?

Por fim, não somos máquinas e passíveis de definição por equações matemáticas. Somos sensíveis e abertos ao que acreditamos. Por isso, a neurobiologia do efeito placebo é muito mais complexa do que imaginávamos. A nossa recepção para um placebo envolve os mesmos neurotransmissores e regiões cerebrais ativados pelos remédios. Nessa esteira, um medicamento feito à base de farinha pode sim amenizar os sintomas de uma doença grave (atenção aqui que eu disse “amenizar” e não “curar”). Por outro lado, nem só de teorias científicas é feito o saber. É perfeitamente possível que algo funcione muito bem sem que saibamos explicar por quê. Pode ser até que a simples expectativa de cura já provoque um bombardeio de reações fisiológicas reais.

Diante tudo isso e mais um tanto de coisas que não trouxe aqui, cabe sim a pergunta feita por uma jornalista para uma cientista no Twitter que foi por muitas pessoas, naquela árida rede, considerada ofensiva. Talvez, a forma e o timing da pergunta da Cynara Menezes atrapalharam um tanto. Pelo fato de conhecê-la bem, entendi como um pedido de reflexão sobre nossa sociedade e não como uma defesa da Constelação Familiar – que Cynara sequer mencionou.

Por que profissionais da saúde não gastam a mesma energia que dispensam para tratamentos sem comprovação científica para falar, também, sobre abusos de diagnósticos criados por mentalidades doutrinadas a rotular pacientes e enquadrá-los numa taxonomia muitas vezes capciosa?

A pergunta em si é um pedido de socorro.

Ao médico é atribuído, em grande medida, um caráter de infalibilidade. O poder do médico é tanto que pode levar (e leva inúmeras vezes) a abusos graves como indicações cirúrgicas sem necessidade, por exemplo, ou uma piora no estado do paciente sem que o médico seja responsabilizado por isso. Dado a nossa realidade, não sabemos se a culpa desse comportamento (que não é raro em consultórios) é dos incentivos financeiros ou de uma formação médica capitaneada pelas indústrias farmacêuticas e de equipamentos.

Não é bom refletirmos sobre isso?

Ou vamos negar o quanto o capitalismo modificou como as verdades são evocadas na nossa sociedade?

Reitero a minha admiração e respeito a todas as partes envolvidas nesse debate. Espero ter contribuído minimamente para essa discussão sabendo que as redes sociais e muito menos esse texto dão conta da complexidade do tema.

Um comentário em “Taxonomia capciosa, indústria farmacêutica e tretas no Twitter. Minha modesta contribuição.

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