Sobre ser uma surda que ouve

Muita gente me perguntando sobre meus aparelhos auditivos e sobre a minha deficiência. Sou uma surda que ouve com próteses. Eu não nasci assim. Senti que estava perdendo audição há muito tempo com uns 25 anos. Protelei fazer exames e usar próteses porque né. Não é fácil encarar isso de frente. Eu tive que enfrentar quando estava no doutorado. Fiquei com medo de não entender as perguntas na banca no dia da defesa da tese e foi ali que decidi fazer as primeiras próteses auditivas.

Como professora, enfrentei em sala de aula muitos problemas e sufocos. Não entendia as perguntas dos alunos direito ou entendia tudo errado e respondia outra coisa que fazia a turma todas às vezes rir de mim. Teve responsável reclamando na direção porque ei não dava atenção à filha que sempre me chamava, sendo que, na verdade, eu não a ouvia me chamando. Ou seja, já estava mais do que na hora de eu fazer meus aparelhos.

Antes da gente fazer os aparelhos, temos que fazer antes a audiometria. E isso para mim foi muito tenso. Percebi ali que a perda já era bem acentuada. Com a audiometria em mãos, fui buscar as lojas que vendem aparelhos auditivos.

Minhas lembranças são péssimas. Foi com um mercado perverso que tive que lidar. Há alguns lugares que te tratam com um mero consumidor e não tem nenhum tato para lidar com tantos sentimentos que temos nesse momento tão vulnerável e asssustador. Estava tensa, triste, com vergonha e sem dinheiro. E os aparelhos são extremamente caros. O SUS fornece de graça, mas há uma fila, um tempo de espera e não podemos escolher o modelo que queremos. 

Lembro que estava triste a beça e fiquei muito pior quando fui fazer o orçamento das próteses.

Até que parei em um lugar que não me tratou como uma carteira de dinheiro e tive um atendimento humanizado com todo carinho possível.

Quando a fono colocou, enfim, pela primeira vez, os meus primeiros aparelhos que eram uns de enfiar no ouvido e não ficar nada do lado de fora, eu chorei de soluçar. Nada a ver com alegria. Chorei de desespero. O som estava longe de ser o do ouvido natural. Tudo que ouvia parecia sair de um rádio de pilha. Eu entendi ali que nunca mais ouviria bem e que isso seria um grande problema que teria que enfrentar diariamente.

Lembro que a fono pediu para eu andar na rua e quando passou um caminhão de lixo eu me abaixei e cobri a cabeça. A sensação era que um helicóptero estava caindo perto de mim.

Mais um detalhe: ouvimos em infinitas frequências. Mas quando perdemos, perdemos em algumas específicas que são detectadas pela audiometria. Porém, os aparelhos auditivos têm frequências limitadas. No meu caso, eu perdi muito mais em alguns agudos do que nos graves. Mas o meu primeiro aparelho amplificada tudo. Por isso, o caminhão que passou na rua (e todos os outros que passaram depois quando estava com os aparelhos) sempre me causaram um desconforto nível socorro.

Mais um detalhe importante para quem me ouviu até aqui e quer entender mais sobre essa deficiência: Ouvir é subjetivo. Não é uma ciência exata. Muitas das vezes, por exemplo, estamos em um ambiente super barulhento e não estamos ouvindo nada porque estamos concentrados em alguma coisa. Quero dizer com isso que explicar o que sentimos não é simples e nem sempre possível. Entre o que eu sinto, o que ouço e o que consigo decifrar sobre tudo isso para uma fono e o que ela entende do que eu falei, há um abismo. Por isso, a regulagem do aparelho é algo muito difícil de acontecer. É comum, para quem os coloca pela primeira vez e sentir tanta coisa ruim, ouvir da fono: é assim mesmo. Você precisa se acostumar. Requer um tempo de adaptação. É normal.

Mesmo tudo dando muito certo na comunicação entre a pessoa surda e a fono, usar aparelhos é como andar com um sapato apertado. Porém, se essa comunicação não tiver sucesso (o que acontece inúmeras vezes), é como se houvesse, nesses sapatos apertados, algumas pedras no dedo mindinho. 

Entendem o inferno na terra? Então… por isso, é comum muitas pessoas passarem por todo esse processo, gastarem muito dinheiro e, no final, preferir ficar sem eles, o que foi o meu caso na época. Eu só os usava em situações em que precisava muito ouvir.  Desenvolvi uma boa leitura labial e, muitas vezes, fingia que entendia o que a pessoa estava falando.

Os aparelhos têm uma vida útil muito pequena. Mais essa. Igual celular. Uns três anos e começa a sinalizar que vai pifar de vez.

Minhas segundas próteses foram melhores e tive o privilégio de ter a ajuda de um músico na audiometria e quando fui ajustá-los com a fonoaudióloga. A presença do David fez toda a diferença porque ele conseguia traduzir e decifrar coisas que eu sozinha teria muita dificuldade. E fez perguntas para a fono que eu não faria. Enfim, foi melhor mas ainda assim, muito ruim.

Fiz campanha com esses aparelhos e quem ficou comigo percebia o quanto eu sofri e o quanto foi difícil. Aqui cabe mais um detalhe importante dessa deficiência. Nossos ouvidos são como nossos olhos em certa medida. Quando entramos em um ambiente muito claro, nossa pupila diminui de tamanho para diminuir a entrada de luz. Quando entramos em um quarto escuro, nossas pupilas se dilatam. Isso é feito de forma involuntária. O mesmo acontece com os ouvidos bons: em lugares de muito barulho, há um mecanismo natural para que a gente não enlouqueça. Os ouvidos formam uma barreira natural. Mas quem tem ouvidos ruins como os meus, perdem essa capacidade. Então, lugar barulhento para mim é algo que nem consigo explicar de tão horrível que é. Daí, mesmo tirando minhas próteses, sofro. É como se estivesse indo para um lugar com muito Sol com as pupilas dilatadas. Dói.

Na campanha, quando entrava em um ambiente com muito ruído, tirava os aparelhos e mesmo assim era um problema que tinha que lidar para além de tantas outras emoções.

Mais um detalhe: as pilhas acabam, são caras e duram pouco. Às vezes, tinha que ir para um cantinho e trocá-las porque elas acabam sempre quando mais preciso ouvir. Já deixei de entender duas peças de teatro e um filme nacional porque as pilhas acabaram.

Em sala de aula, sempre foi um tal de tira e bota aparelho porque há um momento em que todo mundo fala ao mesmo tempo e o alto ruído de fundo me deixava desnorteada.

Se chove, tenho que tirar os aparelhos e entro em desespero se tiver que ouvir. Eles não costumam ser a prova d’água.

Eu decidi não esconder tudo isso desde o início. Estudando o assunto descobri que essa deficiência não é “coisa de velho”. Há muitas pessoas novas que precisam usar aparelhos e não os usam porque ou são muito caros ou porque sentem vergonha ou porque é extremamente desconfortável. Essa deficiência é onde mais encontramos pessoas deprimidas porque é fácil escondê-la ou porque muitas pessoas surdas optam por se isolarem. É comum quem convive com a gente se irritar quando pedimos para repetir algo que foi falado. Essa deficiência irrita quem lida com as pessoas surdas. Então, não é simples lidar com piadas ou com alguém impaciente com algo que está além da minha vontade resolver. Para muitos homens surdos é ainda mais difícil porque muitos são carecas e o cabelo ajuda a esconder bem as próteses. Quando eu fazia rabo de cavalo, eu sempre os tirava. Hoje, é algo que enfrento. Mesmo com cabelo preso e as próteses visíveis, ok para mim. Mas para chegar até aqui foi um longo processo.

Durante a campanha, meus aparelhos deram muito problema porque a vida útil deles estava no fim. Teve um dia na UERJ que entrei em desespero. Eles pifaram e era o dia que o Lula ia estar ali. Naquela confusão de gente, tive que ligar para o técnico que foi lá resolver para mim. Tenso. Mega tenso. 

Já eleita, resolvi fazer novas próteses e aqui começa um novo capítulo desta história. Os aparelhos deram uma boa modernizada de uns tempos para cá desde que comecei a usá-los. Fiz nova audiometria, vi que estou mais surda ainda e com a audiometria fui escolher minhas novas próteses sabendo que ia gastar muito dinheiro e seguir infeliz. Quando a fono colocou em mim um modelo mais moderno, eu não acreditei. Ela abriu a janela (é uma loja que fica em uma rua bem movimentada em Copacabana) e eu chorei. Não foi insuportável o ruído de fundo na rua. Perguntei para ela se os aparelhos estavam ligados e ela pediu para eu tirá-los. Tirei e fez-se o silêncio que ouço quando estou sem as próteses. Coloquei de novo e tudo estava suportável e muito próximo do ouvido natural – ainda que longe se é que vocês me entendem. Quero dizer, que ouvia sem sofrer e que jamais pensava que isso aconteceria de novo. Chorei mas dessa vez de felicidade. E chorei de novo quando ela me disse o preço.

Quase dez mil por cada aparelho e esses nem são os melhores, ok?

Voltei de metrô. Lembro que liguei para minha mãe chorando porque consegui andar de metrô sem enlouquecer com tanto barulho.

Como sei que muitas pessoas têm essa deficiência e que não têm as condições de comprar algo nessa qualidade, eu sofro e, como deputada, estou atuando nisso já que não temos sequer desconto no imposto de renda. Não temos desconto em quase nada por ser surda. Muita gente sequer tem as informações necessárias sobre essa deficiência.

Essa é a minha história. As deficiências são muitas e todas elas têm suas especifidades. O que funciona para mim, para outra pessoa, pode não funcionar. Em tempo, implante coclear que sempre me indicam quando falam sobre isso é uma cirurgia de alta complexidade que só é indicado para quem não se adapta às próteses. E tem um risco que, no meu caso, não preciso correr.

Resolvi contar tudo isso porque muita gente se mostrou curiosa por um outro texto e vídeo que fiz contando que tive dificuldades de carregar os aparelhos em uma viagem e entrei em desespero. Essas próteses não são à pilha e sim carregáveis como fazemos com o celular. Tenho uma base, coloco eles ali toda noite e quando saio de casa, coloco os aparelhos. Ah sim, já tive que voltar para casa várias vezes correndo porque me esqueci de colocá-las e só percebi quando alguém veio falar comigo.

Estou vivendo de forma muito mais confortável e o sonho é que todas as pessoas que tenham essa deficiência tenham esse conforto. Não é fácil viver em um mundo não inclusivo e tão capitalista. Existe a solução, faltam as condições de chegar até ela.

Não quero que ninguém sinta pena de mim com esse relato. Não o fiz para isso. Isso para mim tem dois propósitos: (1) trazer sensibilidade para essa deficiência e, por tabela, para todas as outras e (2) que eu fale cada vez com mais naturalidade de algo que já me envergonhou muito. 

Consegui mais uma vez. Está tudo bem, mas é preciso um grande esforço sempre para que fique tudo bem.

Obrigada por me lerem até aqui.

——

Já apareceu gente aqui querendo me corrigir dizendo que “surdo é quem não ouve nada” e tem Libras como a “língua natural”. 

Essa leitura está errada em dois pontos: 

Primeiro: considerar que todas (ou a maioria) das pessoas surdas sabem Libras. Conforme dados do IBGE, a maioria das pessoas surdas no Brasil não usa língua de sinais e isso é um problema que precisamos nos esforçar para entender e resolver. 

Segundo: uma pessoa surda pode ouvir com implante coclear, com aparelhos auditivos (o que é o meu caso) ou com próteses implantáveis. Segundo a OMS, temos 1,5 bilhão de pessoas com algum grau de surdez no mundo. E apenas 30 milhões têm surdez profunda. 

Pessoas surdas podem ser as que não ouvem nada e podem ser pessoas que ouvem com a audição que lhe resta. 

Há vááááários graus de deficiência auditiva. A maioria dos casos se beneficia do uso de aparelhos auditivos. 

Estamos em 2023, meu povo, então, vamos atualizar os conceitos:

Há pessoas surdas que nunca ouviram e que falam perfeitamente (Beijo, Armando Nembri!), que ouvem com ajuda de tecnologia, que ouvem e dominam a língua de sinais, há surdos que não ouvem nada e que não utilizam libras para se comunicar, há pessoas surdas que não sabem português (a maioria, por sinal – Lembre de quando você foi alfabetizado e o quanto os fonemas foram importantes nesse processo. Para alfabetizar uma pessoa que não ouve som nenhum, são necessárias outras metodologias que poucas pessoas dominam), e sim, há pessoas com surdez severa e que só se comunicam com a língua de sinais e há outros casos que, certamente, não citei aqui.

Sou uma pessoa surda que ouve e não há erro nenhum em falar assim. Há, no lugar, uma atualização dos conceitos. Eu não seria irresponsável de falar desse jeito sem antes ter estudado o assunto e conversado com a própria comunidade surda sobre como devo me definir.

4 comentários em “Sobre ser uma surda que ouve

  1. Muito bom o seu texto, Elika.
    Me fez compreender melhor esta condição. Fiz uma audiometria há pouco tempo, e tive uma perda da minha audição, mas segundo o otorrino, nada que “ainda” precise de um aparelho auditivo…mas vislumbro no futuro a necessidade de usar um.
    (ultimamente as pessoas tem perdido a paciência comigo, por pedir para repetir algo que não consegui ouvir direito) :p
    Beijo e continue escrevendo muito.

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  2. Excelente texto, Elika,
    Creio que é imperativo que o poder público comece a s preocupar com esse problema gravíssimo que atinge grande parte da população e você, na Alerj, terá um papel preponderante.
    P.S.: Sou seu eleitor desde sua primeira eleição para vereadora.

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  3. Você é muito maravilhosa.

    Gratidão por tão precioso relato e reflexão. Fiquei muito tocada e me fez refletir profundamente.

    Um afetuoso abraço, Mestra

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  4. Excelente texto, Elika.
    Me identifiquei Muito com o seu relato. Vivenciei muita coisa narrada por você quando comecei a usar próteses auditivas há 3 anos e meio. Acredito que você, com toda a sua lucidez e sensibilidade, veio dar vez e voz a quem enfrenta problemas para ter a chance de ouvir e ter uma melhor qualidade de vida. Como não sou do RJ, gostaria de vê-la na Câmara dos deputados em Brasília defendendo as demandas dos deficientes auditivos de todo o Brasil.
    Que Deus a abençoe.

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