2020: Um Odisséia na Terra

No momento em que havia guerras pelo mundo, a Amazônia ardia em chamas, o aquecimento global nos assustava, a polarização política gritava, a fome seguia, o sarampo voltava, o fascismo avançava, e mais outras desgraças aconteciam, um novo medo apareceu e tudo que era enorme ficou menor. Um vírus nos atingiu. Tenhamos ou não contraído covid 19, sentimos algum efeito dele sobre nós. Ficamos todos atônitos não porque algo grande e ruim começou a acontecer, mas porque foi algo algo muito ruim que não sabemos como lidar.

A comparação entre os países é natural, mas há muitos detalhes sendo esquecidos quando o paralelo é feito porque… não há paralelos.

A realidade não é matemática.

Os números sozinhos não são suficientes para descrever o que, de fato, se passa aqui ou acolá. Precisamos contextualizá-los.

Aqueles que nos disseram que o vírus era fatal “somente” para pessoas com doenças pré-existentes ou idosos tomaram como base uma realidade que não é a nossa. Na Itália, um exemplo sempre citado dado o número de mortos que não para de crescer até o momento em que escrevo esse texto, ainda que encontremos pessoas pobres, está longe de ter comunidades abandonadas pelo setor público como vemos aqui. Isso significa que podemos contribuir para uma nova e triste verdade: descobrir, por exemplo, que a covid 19 mata muitos jovens se estes não estiverem bem alimentados e viverem em condições precárias e em lugares insalubres sem saneamento básico. Ainda que não tenham nenhuma doença, pode ser que pessoas jovens sejam vítimas fatais desse vírus. Existe a possibilidade de rejuvenescer esse quadro mórbido.

Li muito sobre a China e a forma que foi usada para o controle do coronavírus. O que a China fez certamente não é passível de ser copiado pelo resto do mundo. Mas pode ser pensado, melhorado, adaptado ou mesmo descartado por uma ideia diferente mas que tenha o mesmo potencial de controle da doença. Não há mais privacidade por lá. Se alguém sai, celulares são avisados. Existe um controle em grande escala da população sobre o que cada um compra e os locais que frequenta. Dentro de casa e nas ruas, sua vida é vigiada. Há questionamentos sobre quais são os princípios humanos e éticos que foram violados para se conter o vírus e o que seria aceitável em outras regiões do planeta.

Ouvi que os japoneses seguem trabalhando normalmente e que devemos fazer o mesmo. Comparar Brasil ao Japão é um erro. No comportamento social do japonês, a prática de isolamento de pessoas doentes já faz parte da cultura. Quem está gripado, por exemplo, evita sair de casa e, nas ruas, o uso de máscaras é comum antes da “moda” pegar. A situação sanitária do país também é melhor que a nossa: lá 100% do esgoto é tratado, enquanto no Brasil quase metade da população não tem acesso à rede de tratamento.

Enfim, precisamos olhar para todos os lugares para tentar aprender alguma coisa, mas somos complexos demais para ser medidos por uma só régua.

Minha cabeça segue observando…

Não vou me estender aqui sobre a necessidade do isolamento e da perversidade que é a ideia de um isolamento vertical. Nem na classe média conseguimos isolar os idosos. Sem contar a falta de amor que é isso “você, velho, fica aí trancado nesse quarto. Eu, que produzo, vou sair”. Qual seria o impacto psicológico dessa conduta nessa camada da população que já sofre de solidão, medo e depressão?

Há algumas outras verdades sendo escancaradas pelo mundo e que tenho observado. Uma delas é que a indústria farmacêutica, uma das que mais lucram no mundo, sempre teve pouco ou nenhum interesse na pesquisa sem fins lucrativos sobre doenças infecciosas. Vale lembrar que o coronavírus é uma classe de vírus que não surgiu agora. Prevenir doenças nunca foi o objetivo dessa indústria e muito do seu lucro se dá por conta dos remédios que precisamos tomar para aguentar as cobranças que somos submetidos nesse mundo moderno e perverso.

Tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo que estavam sofrendo com essa onda fascista, anti-ciência e conservadora, vimos o financiamento das pesquisas ser cortado, a mudança climática e as vacinas serem desacreditadas. Quanta verdade apareceu no meio dessa catástrofe, não? Quanta “balbúrdia” está sendo feita nas Universidades e que pode livrar milhares da morte…

Bem da verdade, a gente já estava bem doente. A maneira como consumíamos estava detonando o planeta. Tudo parecia descartável em pouco tempo – até mesmo seres humanos. Para “manter a economia” (sabe deus do que se trata quando dizem isso), o planeta estava sendo detonado. Ela era alimentada por crescentes e diferentes formas de consumo com modas cada vez mais voláteis. Até mesmo o turismo, se formos pensar bem, estava bastante esquisito. A necessidade de mostrar que estava em Paris, por exemplo, era muito maior do que a vontade de interagir com a cidade das luzes. Não importa se pegou fila, se ficou em pé por horas, se sofreu e se aborreceu se, ao final, conseguiu mostrar uma foto sorrindo com uma torre famosa ao fundo.

Somente diante de uma morte cuja cura é desconhecida, muitos conseguiram enxergar como somos frágeis e que o mundo que criamos não estava muito bom de se viver. De um lado, a miséria. Do outro, depressão, ansiedade, pressão alta, diabetes e a necessidade de consumo desenfreado.

Creio que outra forma de troca há de surgir. O tal “deus mercado” terá que ser reinventado. A economia, que parece ser até um ser vivo com sentimentos sujeito a mudanças de humor como narram os jornais, vai conhecer um tipo de socialização porque a recuperação do mundo se dará somente por meio de um processo colaborativo, assim acredito. O militarismo, o nacionalismo e o corporativismo precisarão ficar em segundo plano dando lugar a projetos progressistas que estejam comprometidos com um mundo mais seguro e solidário.

Dizem que estou sendo otimista. É necessário que sejamos. Deixemos para ser pessimistas em dias melhores do que esses que estamos vivendo.

Saúde e educação públicas de qualidade e de acesso para todos se tornaram, para além de necessárias, urgentes porque vimos que sem elas somos muito mais frágeis. Se as outras mortes não falaram alto o suficiente, o coronavírus gritou para que todas as pessoas ouvissem: a saúde é um bem não negociável.

Estamos pagando um preço por esse descaso por conta das políticas neoliberais de saúde implementadas em vários lugares do mundo. Mas agora estamos muito mais conscientes e aproveitando esse isolamento para denunciar a irresponsabilidade de todos os governantes que conduziram esse tipo de política que nos deixou nessa situação atual e observando quem, de fato, cuida de nós.

Não somente a doença se propaga. Conhecimento também contagia. Estamos sendo bombardeados de soluções. A despeito de cada país ter uma particularidade, as melhores ideias vistas nesse cenário passam por uma sociedade que se mantém somente sob a forma de cooperação global. Percebo com muita dor que foi necessária uma catástrofe para que muitas pessoas começassem a repensar sobre solidariedade. E não basta refletir e propor saídas para o problema delimitados por fronteiras.

De nada adianta termos uma saúde pública de qualidade se o resto do mundo não tem.

A saúde é um bem universal. Não pode se limitar a uma bandeira.

Não queremos mais derrubar os ideais neoliberais. O coronavírus já se encarregou isso. Os níveis de desemprego subirão na ausência de intervenções estatais maciças que terão de ir contra o neoliberalismo. Não há outro caminho a não ser na direção de algo que seja politicamente e economicamente “inovador”.

Quando voltarmos, não voltaremos os mesmos. O mundo que deixamos lá fora, quando fomos orientados a nos afastar dele, já não existe mais. Veremos muitos lugares mais bonitos. Em Veneza, as águas estão claras e disseram que há cisnes por lá. As trilhas estarão cobertas e as praias, limpas. A imprudência dessa forma de viver altamente consumista contribuiu muito para a degradação ambiental.

A interação com a natureza deve prosseguir porque, afinal, fazemos parte dela. No entanto, muitos saberão que foi por conta desse diálogo agressivo que chegamos até aqui. Um sistema viciado em lucro e a promessa de riqueza a curto prazo nos trouxe até esse ponto: pessoas e a natureza sendo tratados como se os recursos a serem explorados fossem infinitos.

Mudanças que o mundo levaria décadas para passar, se é que aconteceriam, estão tendo que ocorrer de forma emergencial. A taxação das grandes fortunas e a criação de uma renda básica universal e de abrigos para pessoas que não têm onde morar são apenas alguns exemplos. Nos Estados Unidos, estamos vendo Trump aceitar que é necessário dar um suporte financeiro grande para seus cidadãos e distribuindo, de certa forma, dinheiro. A quantidade de carros nas ruas assim como a lotação dos transportes públicos já estão sendo repensadas pelo mundo, mesmo porque fábricas de carros estão falindo e o contágio de doenças virou algo além de uma ameaça “somente” individual. Ficou nítido que trabalhos informais sem carteira assinada e sem direito algum foi bom somente para quem emprega.

Estamos começando a entender que o que possuímos não é o que nos protege. A nossa segurança vem dos nossos laços e não do que podemos vender.

Agora, estamos tendo tempo de refletir sobre tudo e analisar.

Esse não é o futuro.

Esse é o nosso presente.

Exigimos um futuro melhor porque a história não acabará aqui.

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